A revista Bizz nº 7 (fevereiro de 1986) trazia uma matéria com Hermeto Pascoal, falando da gravação de mais um disco, de como é sua relação com o estúdio de gravação e demais depoimentos do grande músico, numa matéria assinada por José Augusto Lemos. Um trecho de apresentação diz:
"No palco, Hermeto transforma-se na música em pessoa e a celebração vara a madrugada. Mas como será que esse bruxo da improvisação sem limites se comporta dentro dos rigorosos esquemas do trabalho em estúdio? A curiosidade matou o gato, mas José Augusto Lemos quis ver para crer."
"O estúdio da gravadora Som da Gente fica numa viela de Perdizes, um simpático bairro paulistano. Um belo estúdio, com seus 24 canais sob exímia pilotagem de Marcus Vinícius, um dos raros peritos em engenharia de som deste país.
Por trás do vidro que separa sua cabine do estúdio propriamente dito, Marcus vê o seguinte espetáculo: o Campeão - como Hermeto é chamado por sua troupe de músicos - mais três membros da troupe estão tecendo uma intrincada e hipnótica teia melódica, munidos apenas de quatro garrafas. O take é interrompido para acertar a afinação de uma delas. Uma gotinha, depois outra gotinha de água vão sendo acrescentadas até a nota atingir a altura desejada. Se no palco ele é um demiurgo possuído pelo espírito da música, no estúdio Hermeto revela-se um meticuloso artesão, ourives experimentalista.
'Nesta música eu jamais poderia fazer isso, cada um teria de tocar com doze garrafas... no estúdio eu posso pegar essas doze, jogar cada uma num canal separado, fazer acordes completos.'
Aproveito para fazer a pergunta que roía minha cabeça enquanto assistia à gravação. Não seria muito mais rápido e fácil gravar uma única vez o som da garrafa, jogar a amostra num sampler como o Emulator e ter, instantaneamente esses timbres em todas as notas do teclado?
Hermeto esboça um sorriso budista, aquele que pretende esconder a sabedoria: 'Ah, é muito mais gostoso a gente bater, soprar, sentir, esse prazer ninguém me tira.'
Como produtor, Hermeto deu também um belo trato em discos de Fagner (Orós) e Robertinho do Recife (Robertinho no Passo). Na primeira pausa na gravação da 'música das garrafas', Hermeto recebe Tetê Espíndola, que quer um arranjo dele para uma das faixas de seu novo disco. Logo depois, ele conta o encontro: 'Ela trouxe a música pra me mostrar com a craviola, mas eu disse que não precisava escutar. Pedi a ela que gravasse só a voz, e ela: 'Mas como? Cantar a música sozinha, sem harmonia nem nada? Eu respondi: 'Exatamente, eu sei que tem uma história sua nessa música, que você me contou, e a história é sua e você deve cantar sozinha. Depois eu junto a minha história... vai sair com muito mais força'. Alô, produtores, eis aqui um genuíno produtor.
Mais tarde, outra visita. É o saxofonista Carlos Alberto Sion, que veio conhecer a música que Hermeto compôs especialmente para ele gravar com seu grupo, o Pau Brasil. Enquanto isso, Carla - a divulgadora do Som da Gente - conta que já é de praxe Hermeto entrar no estúdio com várias músicas prontas e, depois, improvisar tanto nas horas de folga (com a fita sempre rodando, claro) que essas músicas iniciais acabam tendo de ceder seu espaço às novas, compostas ali no ato.
Quando estou saindo, a troupe volta para mais uma camada de garrafadas melódicas. Demorou uns três dias para a música descolar da minha cabeça."
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