Quando Chico Buarque completou 50 anos, em 19/06/44, o Jornal do Brasil trouxe uma longa matéria sobre o compositor, como é comum quando um grande nome comemora uma data tão especial. Dentre os tantos textos e depoimentos publicados, o jornalista e crítico musical Tárik de Souza faz um resumo da obra de Chico, num texto intitulado "Tabelinhas do Craque Plural", numa referência a um dos grandes passatempos e paixões do homenageado: jogar futebol. Abaixo o texto:
"Quando apareceu na cena dos festivais dos anos 60, Chico Buarque de Hollanda logo recebeu o carimbo de novo Noel Rosa. Sua sintaxe autoral filiada à MPB castiça, entre a marcha-dobrado (A Banda), a marcha rancho (Noite dos Mascarados), o choro (Um Chorinho), a modinha (Até Pensei), o samba (Quem Te Viu, Quem Te Vê, Ela Desatinou, A Rita, Você Não Ouviu) e o samba canção (Carolina, Com Açúcar com Afeto, Sem Fantasia) credenciavam-no como um poliglota purista do idioma, não fosse ele filho de um historiador e sobrinho de um dicionarista. Mas antes que a unanimidade se transformasse numa redoma, o próprio Chico detonou a imagem de bom moço da Tradicional Família Musical, como alfinetou o ensaísta Augusto de Campos no livro Balanço da Bossa. Além da suspeita de retrocesso diante dos avanços harmônicos da bossa nova em agonia, havia o confronto das torcidas dos festivais, que faziam colidir seu perfil acústico apolíneo com a algazarra dionisíaca das guitarras tropicalistas.
Autor da trilha da montagem teatral do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, foi de novo através da ribalta - no texto da peça Roda Viva, uma alegoria sobre a fogueira das vaidades do show bizz - que Chico Buarque deu o primeiro sacode na antiga imagem plácida. Era tão sólida a face comportada do jovem trovador de olhas verdes, que muitos que preferiram atribuir à selvageria da peça - com fígados expostos e sangue espirrado na plateia - apenas à montagem de Zé Celso Martinez Correa. Mas o compositor auto-exilado na Itália após o AI-5, logo daria um chute no lirismo e o tiro no sabiá, anunciados em Agora Falando Sério, numa alusão à sua parceria com Tom Jobim, vencedora vaiada no Festival da Canção em que o público preferiu o protesto de Caminhando, de Geraldo Vandré.
A ingênua sátira monetária de Tamandaré foi vetada ainda em 1966, mas Chico se transformaria num pesadelo para a Censura a partir de 1970, quando emplacou o petardo contra o ditador Médici Apesar de Você, como se fosse um samba de dor de cotovelo. O veto à peça Calabar (parceria com Buy Guerra) e a trechos de várias letras da trilha levou Chico ao Sinal Fechado, em 1974, um disco inteiro de composições alheias, por falta de material próprio liberado. Para driblar os catões de plantão, inventou o pseudônimo Julinho da Adelaide ( o de Acorda Amor, Jorge Maravilha). Após este gol de Chico, os compositores foram obrigados a enviar à Censura documentos de identidade junto com as respectivas letras.
Boa parte das transformações sócio-políticas do país passou pelo filtro lírico-guerreiro do autor de Partido Alto, Meus Caros Amigos e Vai Passar. Dos menores abandonados (Pivete, O Meu Guri) à transformação da figura do vadio naive no corrupto engravatado (Homenagem ao Malandro). Tudo permeado por canções de amor de fatiar o coração (Atrás da Porta, Trocando em Miúdos, Eu Te Amo, Folhetim), sem patinar na breguice. O doublé de escritor, autor de tantas canções no feminino utilizou a legião de personagens de peças de teatro, filmes e balés como sismógrafo dos terremotos anímicos do tecido social (Gota d'Água) e dos mutilados da guerra conjugal (Se Eu Fosse o Teu Patrão, Pedaço de Mim).
Associado a parceiros de inclinações estéticas tão variadas (Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, Ruy Guerra, Caetano Veloso, Vinícius de Morais, Sivuca, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Toquinho, Vinícius Cantuária, Carlinhos Vergueiro), Chico pluralizou sua gramática emepebista. Da Bancarrota Blues ao Tango do Covil, o Baioque, o bolero Anos Dourados e o violeiro Cio da Terra. O criador substantivo, repórter de seu tempo, mergulhou no abstracionismo, num país de questões sociais cada vez mais fluidas (Pelas Tabelas, Estação Derradeira, Brejo da Cruz). Da terra em transe (Bye Bye Brasil) ao eterno retorno (Morro Dois Irmãos, Futuros Amantes), o profeta cedeu ao filósofo."
Autor da trilha da montagem teatral do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, foi de novo através da ribalta - no texto da peça Roda Viva, uma alegoria sobre a fogueira das vaidades do show bizz - que Chico Buarque deu o primeiro sacode na antiga imagem plácida. Era tão sólida a face comportada do jovem trovador de olhas verdes, que muitos que preferiram atribuir à selvageria da peça - com fígados expostos e sangue espirrado na plateia - apenas à montagem de Zé Celso Martinez Correa. Mas o compositor auto-exilado na Itália após o AI-5, logo daria um chute no lirismo e o tiro no sabiá, anunciados em Agora Falando Sério, numa alusão à sua parceria com Tom Jobim, vencedora vaiada no Festival da Canção em que o público preferiu o protesto de Caminhando, de Geraldo Vandré.
A ingênua sátira monetária de Tamandaré foi vetada ainda em 1966, mas Chico se transformaria num pesadelo para a Censura a partir de 1970, quando emplacou o petardo contra o ditador Médici Apesar de Você, como se fosse um samba de dor de cotovelo. O veto à peça Calabar (parceria com Buy Guerra) e a trechos de várias letras da trilha levou Chico ao Sinal Fechado, em 1974, um disco inteiro de composições alheias, por falta de material próprio liberado. Para driblar os catões de plantão, inventou o pseudônimo Julinho da Adelaide ( o de Acorda Amor, Jorge Maravilha). Após este gol de Chico, os compositores foram obrigados a enviar à Censura documentos de identidade junto com as respectivas letras.
Boa parte das transformações sócio-políticas do país passou pelo filtro lírico-guerreiro do autor de Partido Alto, Meus Caros Amigos e Vai Passar. Dos menores abandonados (Pivete, O Meu Guri) à transformação da figura do vadio naive no corrupto engravatado (Homenagem ao Malandro). Tudo permeado por canções de amor de fatiar o coração (Atrás da Porta, Trocando em Miúdos, Eu Te Amo, Folhetim), sem patinar na breguice. O doublé de escritor, autor de tantas canções no feminino utilizou a legião de personagens de peças de teatro, filmes e balés como sismógrafo dos terremotos anímicos do tecido social (Gota d'Água) e dos mutilados da guerra conjugal (Se Eu Fosse o Teu Patrão, Pedaço de Mim).
Associado a parceiros de inclinações estéticas tão variadas (Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, Ruy Guerra, Caetano Veloso, Vinícius de Morais, Sivuca, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Toquinho, Vinícius Cantuária, Carlinhos Vergueiro), Chico pluralizou sua gramática emepebista. Da Bancarrota Blues ao Tango do Covil, o Baioque, o bolero Anos Dourados e o violeiro Cio da Terra. O criador substantivo, repórter de seu tempo, mergulhou no abstracionismo, num país de questões sociais cada vez mais fluidas (Pelas Tabelas, Estação Derradeira, Brejo da Cruz). Da terra em transe (Bye Bye Brasil) ao eterno retorno (Morro Dois Irmãos, Futuros Amantes), o profeta cedeu ao filósofo."
Bendito texto,Tárik de Souza é um luxo!
ResponderExcluir