Palavras Domesticadas

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terça-feira, 18 de agosto de 2015

Cazuza - Com o Fio da Lâmina Bem Afiada



Em sua edição de 08/07/90, um dia após a morte de Cazuza, o Jornal do Brasil trazia uma longa matéria sobre o compositor, que viveu uma torturante agonia em sua luta contra as AIDS, numa época em que a sobrevida à essa doença era bem menor, e o desgaste físico era bem mais nítido e visível. A batalha de Cazuza foi acompanhada por todo o país, já que ele sempre estava na mídia, que muitas vezes se comportava até de forma sensacionalista,e virou uma espécie de mártir e símbolo da luta contra a doença.
Naquela edição, dentre muitos depoimentos e análises de sua obra, o crítico Tárik de Souza publicou um texto que resume a personalidade e a obra de Cazuza, um dos mais respeitados e reconhecidos letristas surgidos na explosão do rock brasileiro dos anos 90. Abaixo a reprodução do texto, que traz como título "Com o fio da lâmina bem afiada":
"O exagerado Cazuza, com suas rasantes na poética da paixão dilacerada, rompeu as farpas da fronteira rock/MPB. Em letras de corrosão lupicínica, este Agenor, quase xará de Cartola, sorveu música ao mesmo tempo em que dissipava a vida em noites que nunca tinham fim (Por que a gente é assim?) lá pelos Baixos da vida. Bem Nelson Cavaquinho da geração rocker. Sempre auto-irônico, realizou a profecia de 'ganhar pra ser carente profissional'. Alguém capaz de explicar seduções intimas; 'Há dias planejo impressionar você/ mas fiquei sem assunto/ Vem comigo, no caminho eu explico.' Um Morrissey de pele dourada pela tropicalidade, à cata de 'um pouquinho de proteção ao maior abandonado, seu corpo com amor ou não, raspas e restos me interessam'. A devastação afetiva, a relação narcísica especular pós moderna, não podia ter gerado polaroide mais holográfica: 'Se todo alguém que ama/ ama pra ser correspondido/ se todo alguém que eu amo/ é como amar a lua inacessível/ é que eu não amo ninguém'. Sem arrego, ouché monsieur Lacan.
Em parcerias com o constante (Roberto) Frejat, o periódico doublé de letrista e crítico Ezequiel Neves e os demais barões vermelhos (Guto e os ex-integrantes Dé e Maurício Barros), Cazuza despontou como crooner e ponta de lança da classe de 82 do BRock, a da Blitz, dos Paralamas, do Kid Abelha, do Magazine a até do Herva Doce. A misturadeira do tempo já peneirou esses primórdios, o que só fez ressaltar o lastro do nosso Lou Reed de plantão, nos desvãos da sociedade amorosa: 'Ser teu pão, ser tua comida/ todo amor que houver nessa vida/ e algum trocado pra dar garantia.' Em carreira solo, Cazuza aprofundou os sulcos de suas obsessões, ampliou o leque de parcerias (Lobão, Leoni, Gil, Rogério Miranda) servindo-se com frequência da dialética das antíteses. 'O nosso amor a gente inventa pra se distrair e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu'. Mesmo no embalo de uma bossa nova, caso raríssimo de hit retardatário na comemoração dos 30 anos do movimento, ele enfia a faca da dor: 'Digo alô ao inimigo, encontro um abrigo no peito do meu traidor'. (Faz parte do meu show).
Acossado pela AIDs, Cazuza, nos últimos discos, afiou ainda mais o fio da lâmina. 'Eu vi a cara da morte e ela estava viva', lancetou ele  no estilete de Boas Novas, do LP Ideologia. 'Se você quer saber como eu me sinto/ vá a um labirinto/ seja atropelado por esse trem da morte', vomitou em Cobaias de Deus (em parceria com Angela Rô Rô), no duplo do testamento Burguesia. Mas o aço da navalha vinha sendo temperado ao longo de toda a carreira. A erosão de Só as Mães São Felizes, a que cita os pontos cardeais de sua cartilha poética, de Allen Ginsberg a Rimbaud ('você nunca sonhou ser currada/ nem transou com cadáveres'), data de 85. É contemporânea da autópsia de corpo vivo de codinome Mal Nenhum: 'Não me chamem a polícia/ Não me chamem o hospício, não/ eu não posso causar mal nenhum/ a não ser a mim mesmo.' O poeta terminal, cantor da garganta em chamas e voz sem apuro, sempre exorcizou a própria condição de passageiro da agonias. Quando voltou a lente para as mazelas do país, acionou morteiros no rock enredo Brasil (mostra a tua cara/ quero ver quem paga ficar ficar assim') ou abriu a metralhadora em O Tempo Não Para: 'transformam o país inteiro num puteiro/ pois assim se ganha mais dinheiro'. Escancarado, sem economizar consequências, locutor impune da indignação no país dos sequestros industrializados. A geração AI-5, comprimida entre o amor livre e a praga da AIDS, auto-imolou seu mártir a sangue frio."

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