domingo, 4 de julho de 2021
Bob Dylan - A Briga do Sagrado e do Profano (Jornaldo Brasil - 1981)
Quem acompanha a carreira de Bob Dylan sabe que ele, no final dos anos 70, se converteu ao cristianismo, ele que tem ascendência judia. Foi uma das várias facetas de sua personalidade mutável e camaleônica. Essa conversão, que não duraria muito, mas tempo suficiente para que ele lançasse alguns álbuns de sua chamada “fase cristã”, foi analisada em matéria assinada por Tárik de Souza no Jornal do Brasil, quando Dylan lançou aquele que seria seu último álbum dessa vertente gospel, Shot Of Love, em 1981. Seu disco seguinte, Infidels, traria de volta o velho Dylan que muitos fãs sentiam falta. A boa matéria não se atém ao disco lançado, e dá uma panorâmica da carreira de Dylan e seu espírito inquieto e contestador. Segue a matéria:
“Bob Dylan, o esquerdista. Bob Dylan, o judeu. Bob Dylan, o carola. Quem tentasse resumir a carreira do mais influente autor americano contemporâneo poderia separar sua obra nesses departamentos. Inicialmente, a transformação através de raízes folk, do frívolo rock’n roll num movimento cultural respeitável, dissidente. Mais tarde, o renegado Robert Zimmerman de volta ao muro das lamentações, batendo no peito pela fé judaica. E por último o cristão fundamentalista fanatizado, um soldado de suas crenças, algo refletido de forma dramática no desastre do LP anterior, Saved (Salvo). Irreconhecível pregador, aos olhos do ceticismo contracultural de Blowind In The Wind, A Hard Rain Is Gonna Fall, Masters Of War e principalmente o sarcástico The Times They Are A Chnging.
Seguindo essa bitola o ouvinte informado da atual carolice de Bob Dylam também deveria desprezar esse Shot Of Love (CBS) que chega agora às lojas brasileiras. No entanto, como todo criador abrangente, Dylan nunca foi uníssono em qualquer dos momentos de sua carreira. Sofreu como poucos do isolamento do superestrelato (seu lixo era vasculhado por um fã enfeitiçado, que revelava ao mundo o cotidiano do ídolo em sua torre de marfim). Teve um casamento tumultuado que terminou num vultoso divórcio. Experimentou e renegou as drogas. Um acidente de moto em 1966, afastou-o ainda mais do público. Nem todos o acompanharam em seus retiros místicos. Mas excursões gigantescas como a Rolling Thunder Review recompuseram uma imagem carismática ante as multidões. Nenhum artista foi tão pirateado quanto Dylan. Também ninguém ousou tanto com o idioma regional (acústico e eletrificado) da música americana. O bardo seguidor de Dylan Thomas e Woody Guthrie varou fronteiras. Foi incompreendido no cinema (Renaldo and Clara), profanou templos sonoros no memorável assalto ao Corneggie Hall, quase menino, em 1962, ao festival da Ilha de Wright e ao Albert Hall de Londres. Com o grupo The Band (The Night They Drove Old Dixie Down) ele sacudiu o country & western. Na guitarra lancinante de Jimi Hendrix (All Along The Watchtower) fustigou o poderio apocalíptico da geração Woodstock.
Em Shot Of Love há um ídolo exausto, mas não inerme. Em frangalhos ideológicos, mas ainda pulsante. Alguém que não despreza os blues básicos e rústicos que definem o grito gutural da linguagem sonora americana. A faixa-título, por exemplo, de acentuação gospel, tem um envolvimento que transcende a letra ou as intenções litúrgicas do autor. Sua temática, consagrada às crenças religiosas, acaba perturbada pelo subtexto sonoro, se me permitem, subversivo. São os casos de Property of Jesus, Every Grain of Sand e Dead Man, Dead Man. O crente, numa de suas interpretações mais obscuras – quase monólogos em voz alta – diz uma coisa, enquanto a música fala outra. Tal disparidade atinge o paroxismo na inesperada homenagem – para a fase atual de Dylan – ao iconoclasta e comediante Lenny Bruce. A belíssima canção, arrastada como um hino macabro, descreve a limpidez do caráter de quem ‘realmente era engraçado e realmente dizia a verdade, sabia do que estava falando e levou o povo para as elites e acendeu luzes em suas camas’. Dylan, tantas vezes injustiçado, também parece encarnar subitamente o martírio do colega. ‘Leny Bruce mudou as coisas e os que o mataram já desapareceram’. Uma indicação de que esse atormentado criador pretende continuar a saga do incômodo poeta que prefere o lado avesso do aplauso. É capaz de imolar - vida e obra – por suas verdades. Coletivas ou pessoais, claras ou obscuras. “
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Muito bom o texto do Tárik,como sempre.
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