" E, como em todo canto - talvez mais aguda lá, em João Pessoa, 'lá em cima', como Zé Ramalho diz, 'cidade pequena, restrita, onde o que influencia é o que vem do Sul, é como um grande alto-falante repetindo as coisas daqui debaixo' - a febre inicial dos conjuntinhos acabou tomando proporções maiores, uma tentativa meio louca, meio ingênua de viver, aqui, o sonho roqueiro que já estava terminando em seus países de origem.
- Ah, teve isso demais, lá. Eu toquei muito em festival ao ar livre, essas coisas. Sabe, Woodstock, tudo isso, todo esse sonho, a gente acreditava pra valer. Só que as dificuldades lá eram imensas, era quase impossível fazer qualquer coisa, simplesmente não existiam recursos.
Zé Ramalho chegou a vir várias vezes ao Rio, no início dos anos 70, 'pra ver como é que era, o que estava sendo feito, quem tocava, como é que se fazia shows e tudo mais. Foi uma coisa louca de dormir em banco de praça, virar rato de porta de show, essas coisas'. Na época, estudava medicina - mas não por muito tempo. Já no segundo ano descobriu que não tinha nascido para ser doutor e resolveu buscar, na música, um caminho próprio. Pouco a pouco afastando-se de seus tempos de roqueiro, mas ainda sem saber em que direção ir, embora um antigo instinto, ou a memória que nunca morre, às vezes lhe soprasse, sem sentir, os rumos que segue, hoje. Foi desse modo, por exemplo, que, ao lado de outros jovens músicos nordestinos como Lula Cortes, Paulo Rafael, Geraldo Azevedo e o próprio Alceu, Zé Ramalho criou e executou o álbum duplo Paêbiru/Caminho da Montanha do Sol, para a etiqueta Rozemblit, selo original do Recife. Gravado 'do modo mais artesanal, louco e carinhoso possível', em dois canais, durante quase todo o ano de 74, o álbum era uma espécie de suíte em torno da legendária Pedra do Ingá, na Paraíba, rochedo coberto de misteriosas e indecifráveis inscrições.
- Tinha muitos sons elétricos, mas eu já usava muito coisas como martelo agalopado, só que vestidas numa linguagem elétrica. Foi um trabalho lindo, que ficou assim como um registro histórico de uma época, de uma geração de músicos nordestinos.
O álbum nunca foi lançado comercialmente, e a maior parte de suas cópias foi perdida no alagamento dos depósitos da Rozemblit, durante as cheias do Capibaribe, no final de 74.
O passo seguinte foi com Alceu, impulsionado no início de 75 pela boa repercussão de seu 'Vou Danado pra Catende', no festival Abertura. O fim da jornada, briga, amargura e desilusão. Quase.
Na verdade, um renascimento. Um nascimento, na acepção da palavra: no final do ano Zé Ramalho foi procurado, em João Pessoa, por sua amiga, a cineasta Tânia Quaresma, que começava a rodar seu documentário Nordeste: cordel, repente, canção. Tânia queria que Zé Ramalho fizesse a direção musical do projeto contactando cantadores e violeiros, ajudando-a na escolha do material. Não deixava de ser um desafio insólito para um ex-roqueiro, interessado por cantoria, mas sem maiores conhecimentos do assunto, na época. E Zé Ramalho se atirou ao trabalho de corpo e alma, com resultados surpreendentes:
- De repente, foi como se acordasse alguma coisa em mim que já existia há muito tempo, mas que estava assim meio esquecida, adormecida. Comecei a perceber como era fácil se envolver com aquele pessoal todo, era como se eu já conhecesse aquilo tudo há tempos, o que num certo sentido era verdade, só que eu não me dava conta. Aí eu mergulhei mesmo, fiquei louco com a força daquilo tudo, principalmente o repente. O repente é uma coisa incrível, os repentistas são verdadeiros criadores na acepção da palavra, criando coisas complexas na hora, sem hesitar, no minuto, mesmo. Nem todo cantador é repentista, só alguns poucos, uma espécie de elite, porque é uma arte muito requintada. E são pessoas assim que têm uma cultura enorme, têm muitas enciclopédias e livros sempre informados de mitologia, geografia, história, tudo, porque num desafio têm que ser rápidos na resposta, têm de saber todos os assuntos.
- Aí eu fiquei de tal forma apaixonado, que quando acabou o trabalho da Tânia, continuei por conta própria, saí pelo serão ouvindo, gravando, ganhando a amizade dos cantadores a ponto de, daí a um pouco, já estarem vindo na minha casa, fazer cantoria. E isso, pra mim, não teve nenhum conflito com o que eu gostava antes, com o que eu fazia. Porque eu acho que, se alguma coisa é sincera e bonita, em música, então não importa de onde veio. É claro que o rock e os Beatles expressavam uma realidade deles, lá, mas aquilo me tocou a sensibilidade, então não havia porque jogar isso fora, já estava dentro de mim. Mas a força do repente foi tamanha que, se algum lado meu saiu perdendo nesse confronto, foi meu lado antigo, de roqueiro.
Quem conhece o mundo do repente e da cantoria, logo liga o trabalho de Zé Ramalho ao de outro Zé, o Limeira, o Buñel do sertão, poeta alucinado, surrealista. Foi certamente de Zé Limeira que Zé Ramalho tirou a inspiração para seus 'a cor desse olho é denso negror/é como o bafejo da Hidra de Sal/dragões do meu sono que rasgam anúncios da televisão' e 'meu treponema não é pálido nem viscoso/os meus gametas se agrupam no meu som'. E ele não nega:
- De todos, pra mim, Zé Limeira é o maior, o mais impressionante. Tem gente que acha ele absurdo, engraçado, mas eu não vejo graça nenhuma na poesia dele: para mim é tudo muito exato, muito real, é o sertão mesmo. Tenho depoimentos de violeiros muito antigos, que tocaram com ele, descrevendo sua figura: era impressionante, muito louco, uma coisa muito bonita. Imagine, lá nos anos 40, um preto enorme, quase dois metros de altura, com os dedos cheios de anéis, cheio de colares, lenço vermelho, um chapelão, andando a pé, porque ele só caminhava, não usava transporte nenhum. devia ser uma coisa muito linda.
Alimentado pela síntese final, o encontro do Zé Ramalho urbano com o menino de Brejo do Cruz, o trabalho estava pronto. E, acreditando nele como nunca, Zé Ramalho desceu novamente para o Rio, disposto a 'romper com o mundinho de João pessoa, a família, os medos todos' e lutar por sua música. Depois de um ano difícil, afinal encontrou uma brecha, com substancial ajuda de Carlos Alberto Sion, produtor de seu disco. E, mais do que fé, tem força para continuar adiante.
- Acho que não vai haver nunca mais um movimento na música brasileira, mas não precisa. Não tem nem cabimento. Movimento é a cabeça de cada pessoa, e o fato dessas pessoas estarem aí trabalhando, mostrando sua música e sendo ouvidas apesar de todas as dificuldades.
E o fato de, hoje, existirem tantos nordestinos agitando na música brasileira mais atual, seria coincidência?
- Ah, não sei... O que a gente lá de cima tem é um sangue muito forte, muito rebelde mesmo, essa coisa de Lampião, de não se conformar, de querer romper com as coisas e suplantar os obstáculos. E depois a cultura, o som de lá é muito forte, mesmo, uma coisa muito inteira que só quem é de lá conhece realmente, porque foi muito deformada aqui pelo Sul. Talvez seja a soma disso que marque o trabalho de tanta gente de lá na música, hoje."
- Acho que não vai haver nunca mais um movimento na música brasileira, mas não precisa. Não tem nem cabimento. Movimento é a cabeça de cada pessoa, e o fato dessas pessoas estarem aí trabalhando, mostrando sua música e sendo ouvidas apesar de todas as dificuldades.
E o fato de, hoje, existirem tantos nordestinos agitando na música brasileira mais atual, seria coincidência?
- Ah, não sei... O que a gente lá de cima tem é um sangue muito forte, muito rebelde mesmo, essa coisa de Lampião, de não se conformar, de querer romper com as coisas e suplantar os obstáculos. E depois a cultura, o som de lá é muito forte, mesmo, uma coisa muito inteira que só quem é de lá conhece realmente, porque foi muito deformada aqui pelo Sul. Talvez seja a soma disso que marque o trabalho de tanta gente de lá na música, hoje."
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