Foi em 1978, no ano seguinte ao lançamento de seu primeiro álbum solo, que Zé Ramalho passou a ser conhecido em todo o Brasil. Havia algo diferente naquela voz personal, naquelas letras filosóficas, místicas e um tanto herméticas. Algo que chamava a atenção para um artista novo, dentre tantos nordestinos que invadiam o cenário da MPB.
Na edição de O Globo de 12/04/78, a jornalista Ana Maria Bahiana trazia uma matéria com Zé Ramalho, intitulada "Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste":
"Olhos de fogo, rosto anguloso e maníaco, uma cabeleira enorme, dedos ossudos vibrando a viola, voz metálica: quem assistiu à estreia de Alceu Valença em teatro, aqui no Rio, há três anos, recordará muito bem a aparição/intervenção de Zé Ramalho da Paraíba às horas tantas do show desafiando o titular do concerto numa cantoria doida que partia de 'Edipiana nº 1' e acabava em 'Beija-Flor', 'Treme-Terra', 'Otacílio Batista", 'Zé Limeira', o que desse e viesse. Ameaçador. Intenso. Impressionante. Estranhamente, contudo, Zé Ramalho desapareceu logo depois, após uma rixa com Alceu em pleno palco, em São Paulo. Parecia mais uma careira promissora terminada antes de começar, vitimada pelas já históricas dificuldades do mercado brasileiro.
- Era uma tensão insuportável - Zé Ramalho recorda, hoje. - A gente estava em São Paulo numa casa bem atrás do aeroporto, era só hélice e turbina o dia inteiro, a gente não conhecia a cidade, só ficava o dia todo, sem perspectiva nenhuma, sem saber o que fazer. Porque aquela excursão tinha lá um monte de nome de gente organizando, promovendo, não é, mas era só nome, mesmo, só pela firma, porque quem fazia tudo era a gente mesmo, era divulgação, montar aparelhagem, tudo. Uma coisa desgastante, aflitiva. E eu estava cada vez mais chocado com a agressividade da coisa toda, o clima de competição, uma coisa desesperada. Aí uma noite, no palco mesmo, em vez de fazer meu número, que era 'Jacarepaguá', me deu vontade de cantar 'Vila do Sossego'. Ficou um clima estranho, o Alceu se zangou, houve violas quebradas, mas nenhum escândalo. As pessoas acharam que era do show. E eu voltei pra Paraíba, pra pôr minha cabeça no lugar, juntar os pedaços.
Hoje, Alceu canta a violenta 'Vila do Sossego' em seus shows, como homenagem ao companheiro. 'Em seus papiros Papillon já me dizia/ que nas torturas toda carne se trai/ e normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente o nervo se contrai/ com precisão'. E Zé Ramalho da Paraíba estreia hoje enfim em disco - pelo novo selo Epic, o 'progressivo' da gravadora CBS - e, em concerto até domingo, no Teatro Tereza Raquel. Curiosamente, cercado já, por muito falatório tipo expectativa, e a escolha, pelos leitores do Jornal de Música, como revelação de compositor de 1977.
- Não lamento nada do que fiz. Acho que faria tudo de novo, inclusive os erros. A palavra mais importante, pra mim, é síntese. Fiz uma síntese dos erros, e isso foi muito bom. Eu não acho ruim que as coisas sejam difíceis, batalhadas. Se fosse fácil, menina, já viu que ia ter de qualquer um aí se achando o máximo, mandando ver. Tem de ser duro, mesmo, porque isso é que faz teu trabalho crescer, faz você ver se tem valor mesmo, se acredita no que faz.
A história de Zé Ramalho da Paraíba é tão estranha e intensa como sua música - e, como sempre, a explica. Na sua música, os sons vêm expresso do sertão, secos e incisivos, mesmo quando interpretados por guitarras ou sintetizadores. E as letras causam espanto para quem não conhece a maravilha do repente, fonte onde Zé Ramalho bebe com frequência e humildade. São martelos, mourões, sextilhas, quadras - rigorosamente alucinadas como é a melhor poesia do sertão, e urgentemente contemporânea. Dizendo, por exemplo: 'Se eu calei foi por tristeza/você cala por calar/calado vai ficando/só fala quando eu mandar/rebuscando a consciência/como meio de viajar/até a cabeça do cometa/girando na carrapeta/no jogo de improvisar ('Avohai').
No entanto, não foi cantoria e repente que Zé Ramalho se lembra de ter ouvido com atenção, pela primeira vez, mas Beatles e Roberto Carlos. Morava então em João Pessoa, meados dos anos 60, estudando no Colégio Marista. O sertão de Brejo do Cruz, onde nascera, a 3 de outubro de 1949, parecia uma lembrança opaca, distante, uma fotografia.
- Meu pai, eu nem conheci. Morreu afogado num daqueles açudes do sertão quando eu tinha uns dois anos. Dizem que não fazia nada, era um seresteiro, um boêmio... A figura forte, pra mim, ficou sendo meu avô, que foi até lá em Brejo do Cruz e tirou a família toda daquela situação de pobreza. Tirou mesmo, saiu puxando, retirante mesmo, em pau-de-arara. Levou a gente primeiro pra Campina Grande, onde ele era fiscal, sabe fiscal de porteira como eles chamavam, ficava na fronteira controlando quem entrava e quem saía. Teve uma morte linda, meu avô. Parecia um rei. Morreu assim na cama, na casa que ele construiu, com todos os filhos e netos e bisnetos em volta, eu fiquei assim comovido de tanta beleza, de ver uma pessoa indo adiante tão bonito, tão sereno, olhando em volta e vendo que tudo aquilo tinha saído dele, toda aquela gente. (É a figura já mítica do velho fiscal de porteira que abre o álbum de Zé Ramalho, evocado na canção 'Avohai': 'Um velho cruza a soleira/de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do eu colar/na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador/oh meu velho e invisível Avohai').
De Campina Grande para João Pessoa e, lá, o Colégio Marista, o rádio, os Beatles, os Rolling Stones e Roberto Carlos, as primeiras posições no braço do violão.
- Eu comecei a querer fazer música por causa do rádio, do que eu ouvia no rádio. E o que eu ouvia era isso, era principalmente Beatles e a coisa toda da Jovem Guarda. Beatles, então, foi demais. A primeira vez que eu ouvi Beatles, fiquei impressionado, nunca tinha ouvido coisa tão forte, tão bonita.
E aí, os inevitáveis conjuntos para festa, baile, clube, boate: os Jets, os Demônios. 'Era uma cópia mesmo, sabe, o que a gente queria era tirar a música igualzinho ao disco. Mas foi muito bom como treinamento, como aprendizado profissional.' "
(continua)
- Meu pai, eu nem conheci. Morreu afogado num daqueles açudes do sertão quando eu tinha uns dois anos. Dizem que não fazia nada, era um seresteiro, um boêmio... A figura forte, pra mim, ficou sendo meu avô, que foi até lá em Brejo do Cruz e tirou a família toda daquela situação de pobreza. Tirou mesmo, saiu puxando, retirante mesmo, em pau-de-arara. Levou a gente primeiro pra Campina Grande, onde ele era fiscal, sabe fiscal de porteira como eles chamavam, ficava na fronteira controlando quem entrava e quem saía. Teve uma morte linda, meu avô. Parecia um rei. Morreu assim na cama, na casa que ele construiu, com todos os filhos e netos e bisnetos em volta, eu fiquei assim comovido de tanta beleza, de ver uma pessoa indo adiante tão bonito, tão sereno, olhando em volta e vendo que tudo aquilo tinha saído dele, toda aquela gente. (É a figura já mítica do velho fiscal de porteira que abre o álbum de Zé Ramalho, evocado na canção 'Avohai': 'Um velho cruza a soleira/de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do eu colar/na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador/oh meu velho e invisível Avohai').
De Campina Grande para João Pessoa e, lá, o Colégio Marista, o rádio, os Beatles, os Rolling Stones e Roberto Carlos, as primeiras posições no braço do violão.
- Eu comecei a querer fazer música por causa do rádio, do que eu ouvia no rádio. E o que eu ouvia era isso, era principalmente Beatles e a coisa toda da Jovem Guarda. Beatles, então, foi demais. A primeira vez que eu ouvi Beatles, fiquei impressionado, nunca tinha ouvido coisa tão forte, tão bonita.
E aí, os inevitáveis conjuntos para festa, baile, clube, boate: os Jets, os Demônios. 'Era uma cópia mesmo, sabe, o que a gente queria era tirar a música igualzinho ao disco. Mas foi muito bom como treinamento, como aprendizado profissional.' "
(continua)
Zé da Paraíba...
ResponderExcluirZé Ramalho da Paraíba, era assim que ele era conhecido quando se lançou na música
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