Durante quatro
dias, entre 14 e 17 de agosto de 1980, aconteceu no Rio, no ginásio do
Maracanãzinho, o Rio Jazz Monterey Festival. O evento trouxe nomes de peso,
nacionais e internacionais, como Baby Consuelo, John McLaughlin, Weather
Report, Banda Black Rio, Al Jarreau, Hermeto Pascoal, Victor Assis Brasil, Pat
Metheeny, Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos, George Duke, Stanley Clarke,
Airto Moreira e Jorge Ben, entre outros.
Com um time de
convidados desse quilate, não tinha como tinha o festival ter aspectos
negativos, isso teoricamente, pois uma das maiores atrações nacionais do
festival, Hermeto Pascoal, teve muitos problemas durante sua apresentação.
Nesta entrevista publicada no jornal quinzenal de música, Canja, em setembro
daquele ano, Hermeto desabafou:
“Hermeto já
começou a ficar invocado de tarde. O pessoal do equipamento de som chegou nele
assim, numa péssima:
- ‘Ô Hermeto,
você não vai tocar até tarde hoje à noite, né?’
Outro vinha e
advertia:
- ‘Cuidado com
os instrumentos. Se quebrar, paga!’
Papo mesquinho
pra cima de um músico (e que músico!) que inclusive cedera seu piano pra a apresentação
do Al Jarreau – no Festival não tinha um piano que prestasse. Mas deixa pra lá.
Ele entrou em
cena na boca da madruga. O astral não estava grande coisa no Maracanãzinho
tomado pela metade, uma platéia inquieta como só, mas dava pro gasto. Antes
dele entrou o violonista Heraldo do Monte, que tirou uma música que a folhinha
não marca.
- ‘Um dos
maiores do mundo, mesmo’, proclamou Hermeto ao entrar, se babando com a
apresentação do amigo.
Começou levando
um papo muito amoroso com a platéia, chegou a tocar uns vinte minutos e, de
repente, aquele ouriço quando ele estava ao piano e ameaçou parar pela primeira
vez se não fizessem silêncio.
- Qual foi a
bronca, Hermeto?
- ‘No momento
eu não sabia o que estava acontecendo no auditório. Não sei se você sabe que eu
enxergo pouco, e quando estou no palco só vejo os instrumentos e a música.
Depois é que me contaram em casa: tinha gente sendo presa porque tava fumando
maconha. Do meu lado esquerdo o público fazia barulho porque tinha uma câmera
na minha frente e o pessoal gritava; ‘Sai daí, palhaço!’ No dia seguinte ele
fez a mesma coisa, o tal do cameraman, e o baterista do conjunto do George Duke
deu-lhe um soco no meio da cara, segundo me contaram. Bom, aí eu comecei a
ficar nervoso. Não estou me retratando. Acho que o público devia silenciar.
Apenas culpo a confusão, inclusive soube que tinha gente dançando de patins no
fosso, perto da orquestra. Mas de qualquer forma, senti uma coisa estranha,
porque tinha um grupo encomendado pra fazer barulho na minha hora. Você viu que
eu saí e voltei. O barulho sempre começava de uma parte do lado direito. Meus
filhos me falaram aqui em casa depois que era o pessoal com a camisa do
Festival, a coisa partia sempre do lado deles. Um grupo encomendado pra fazer
barulho na minha hora, não partiu do público que sempre me aplaudiu. Na hora eu
falei que eram dez por cento fazendo barulho, que estavam ali só pra fazer
zorra. Fã-clube desses cantores de merda que as gravadoras enfiam no festival.
Festival de música não é de bicão. Até em festival tem jabá: tão botando os
bicões pra tocar com a gente, inclusive a minha gravadora, que é outra bosta. O
pessoal veio me dizer aí que aquilo não era público pra mim. Que é isso, rapaz!
Já toquei na rua e tudo. Em todo festival que vou tocar tá assim de gente. Por
isso, no próximo festival, eu peço pras pessoas que quiserem escutar uma coisa:
fiquem em silêncio para deixar bem visível o pessoal da bagunça.’
Fazendo um gesto não muito amistoso para a plateia |
O pessoal da
bagunça causou um estrago maior do que pensa. John McLaughlin, por exemplo, só
estava esperando clima para entrar e tocar Nem
Um Talvez, música de Hermeto que os dois tocaram juntos num disco de Miles
Davis.
Mas nem tudo
está perdido. Antes mesmo do próximo festival, daqui no máximo a duas semanas,
Hermeto vai fazer um show de graça ao ar livre e, sem gravadora e sem
patrocinador, para o distinto público que quiser curti-lo. Enquanto não fizer
isso, ele não sossega. Por isso também não aceitou o convite pra um show de
quatro dias semana passada no Teatro Galeria, no Rio.
- ‘Não é
retratação. É vontade de tocar’.
Dias depois do
lamentável incidente que envolveu Hermeto Pascoal durante sua apresentação no
Rio Jazz Monterey Festival, as opiniões dos críticos, músicos e público ainda
continuam divididas. A favor ou contra o artista, de forma geral elas mostram
uma coisa: são totalmente emocionais. Hermeto, manifestando-se contra o excesso
de luzes, de barulho, de câmeras de televisão, abandonou o palco, para depois
voltar, ser vaiado e abandoná-lo definitivamente.
No entanto,
para quem conhece bem Hermeto, mesmo reconhecendo que ele é um artista
imprevisível, principalmente em termos de sensibilidade e criatividade, o
infeliz episódio não pode ser encarado como mero fato isolado e uma explosão de
momento, mas sim como ápice de um processo que deve merecer profunda análise e
reflexão.
Afinal,
Hermeto Pascoal é reconhecido internacionalmente como um dos maiores gênios da
música brasileira contemporânea e um dos mais – se não o mais – criativos. Sua
música não é, nem de longe, de fácil assimilação, mas apesar disso seu
prestígio é incontestável. Como líder, Hermeto é dos que mais valorizam todos
os que com ele trabalham, como mostrou ao destacar com carinho e respeito
incomuns os componentes de seu grupo no Festival, antes do incidente. Como
intérprete, é um instrumentista que se equipara aos maiores do mundo, ao piano,
flauta, saxes e outros instrumentos, como mostrou também no Festival, ao piano
e flauta em momentos de grande beleza e impacto, antes do incidente. Como
homem, Hermeto é extremamente sensível às injustiças, tem extraordinário
sentido humano e é possuidor de uma personalidade cativante, e também
totalmente não convencional.
Apesar de
todos os lances inusitados que marcam suas apresentações, jamais Hermeto dotou
atitudes tão drásticas, inclusive em festivais como os dois de São Paulo e o de
Montreux, e não é fácil se aceitar como mera coincidência que isso tenha
acontecido justamente num festival em que prevaleceram quase que só aspectos
negativos e discriminações, de que foram vítimas principalmente músicos
brasileiros. Até porque tudo indicava que Hermeto se preparava para fazer uma
apresentação menos exótica, menos ‘hermética’, como atestam a inclusão do
guitarrista Heraldo do Monte, músico notoriamente discreto, e o próprio início
do programa, com interpretações muito mais sóbrias e menos inusitadas.
Em conclusão,
a hora é de uma reavaliação, porque há problemas que o próprio Hermeto vem
apontando, inclusive em recente entrevista em que se queixava da pouca difusão
de sua música pelo rádio, problemas esses que afetam e poderão ainda afetar a
maioria dos artistas sérios brasileiros e comprometer seriamente ainda mais a
nossa cultura já relegada a um plano cada vez mais baixo.”
Parabéns, pelo blog
ResponderExcluirSempre comentava com meu marido sobre este dia, e quando encontramos o post, foi como se eu estivesse novamente lá. Mesmo Hermeto tendo abandonado o palco foi contagiante tê-lo ouvido, eu fazia parte do grupo de ficou em silêncio, e ficamos muito tristes quando ele saiu definitivamente.
Ainda bem que pessoas como vc sabem valorizar um artista como Hermeto
ResponderExcluirEu estive lá. Assisti Egberto e Naná,Victor Assis Brasil e o não citado McCoy Tyner.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Com certeza foram momentos inesquecíveis
ResponderExcluirAmigo, eu estava lá nesse dia. Estava na área destinada aos fotógrafos, embora fosse fotógrafo amador - naquele tempo as coisas eram bem mais "flexíveis". Lembro bem que Hermeto, certamente mal-humorado por conta do barulho, passou a reclamar de uma luz, frontal, que o incomodava. Ele esbravejou com o cara: "Apague essa merda, rapaz!" Depois de parar duas ou três vezes a execução no piano de uma música (que, se não me engano, chamava-se "Leila") por conta disso, sem sucesso, ele desceu do palco. Fui um dos que o cercaram, logo que ele desceu, pedindo que tocasse para pessoas como a gente, que estava ali para ouví-lo. Nessa hora o fotografei, em close por que estava na sua frente, furioso. Ele foi se acalmando e voltou.
ResponderExcluirBelo testemunho, Juarez. Obrigado pelo comentário
ResponderExcluirTambém participou nessa edição o grupo argentino: Serú Girán.
ResponderExcluirObrigado pela informação
ResponderExcluirEu também estava lá. Fiquei muito puto e triste com tudo o que aconteceu. Lembro que, nesse dia, também tinha Pepeu Gomes e Baby Consuelo, e pode ser que parte do público tenha ido por eles. E o que o Hermeto, após dar uns murros no piano, falou algo como "Vocês querem bate-estaca então fiquem...!" E jogou a flauta no chão. Eu, como fã do Hermeto, passei uns dias decepcionado com ele, por causa da reação; mas depois entendi porque a genialidade, também, pode expulsar os vendilhões do templo.
ResponderExcluirExato.Um artista do gabarito de Hermeto merecia ser mais respeitado. O palco é um lugar sagrado para o artista, e ele sentir que não está tendo seu trabalho valorizado pelo público, ou uma parte dele, causa revolta e reações como aquela. Um abraço
ResponderExcluirSerú Girán também estava
ResponderExcluirEstive lá só pelo Pat Matheny...
ResponderExcluirEstive lá tambem
ResponderExcluirValeu
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ResponderExcluirBom Marcio, aqui Lautaro, estou escrevendo da Argentina. Eu usei o google tradutor. Gostaria de entrar em contato porque sou jornalista e colecionador de rock e estou fazendo uma investigação sobre a banda Serú Girán, que se apresentou nos dias 17/08-1980 no "Festival de Jazz de Río Monterrey". Obrigado !
garciamorenolange@gmail.com.
Boa tarde, Lautaro. Uma pessoa da Argentina já me falou sobre essa banda. Vou ver se encontro algo e faço contato por seu email. Obrigado
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