Palavras Domesticadas

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sábado, 21 de abril de 2012

Jorge Amado Fala de Caymmi

"Não sei, não recordo quando e onde conheci Dorival Caymmi, quando nos apertamos as mãos pela primeira vez, rimos juntos nossa alegria. Foi, com certeza, na Bahia, antes da partida do clássico Ita, levando-nos - ao aprendiz de compositor e ao aprendiz de escritor - para tentar exercer nossos ofícios no Rio. Naquele tempo, quem quisesse um lugar ao sol tinha de começar pelo sacrifício de sair de sua terra, a terra da Bahia, onde éramos livres adolescentes nos mercados e nas praias. Só no Rio havia ambiente e oportunidade. Na praia de Itapoã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga cresceu o menino Dorival, filho de Seu Durval, modesto funcionário estadual, bom no violão e no trago. Cresceu assim o moço Caymmi, na pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério, preparando-se para ser seu poeta e seu cantor. Livre coração e o desejo de criar. A música popular brasileira não era ainda assunto de gazetas, revistas e festivais. O moço baiano, no entanto, não desejava nem o título de doutor, nem o emprego público prometido, queria tão somente compor e cantar. Teve de partir para ganhar a vida difícil.
Naqueles idos de 1936 o mundo era nosso nas ruas do Rio de Janeiro, lá se vão mais de trinta anos. Uma canção que fizemos juntos naquela época, É Doce Morrer no Mar, tirada de uma cena de Mar Morto, continua popular até hoje e pode-se mesmo dizer: cada vez mais. Aliás, eis uma das características fundamentais da música de Caymmi: sua permanência, sua constante atualidade. Sendo seu tema a Bahia, sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seu mistério, sua poesia, seus amores, a morena de Itapoã e as rosas de abril, Iemanjá e o vento do oceano, a jangada e o saveiro, o mundo da Bahia, não há uma frase sua, uma única, de música ou poesia, que seja circunstancial, que derive da moda, de uma influência momentânea. Para Caymmi a moda não existe. Eu posso dizer, posso testemunhar como ninguém. Juntos andamos um bom bocado de caminho, juntos criamos alguma coisa, juntos começamos a envelhecer. Juntos fizemos teatro, cinema, tratamos o livro e a partitura, tocamos a vida e o amor. Amizade de toda a vida, 'meu irmão, meu irmãozinho'."

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