Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 23 de março de 2018

Aldir Blanc e os Deveres de Poeta e Cidadão - O Pasquim (1979)

Em sua edição de 30/03 a 05/04/79 o jornal O Pasquim em sua coluna "Todo Ouvidos", assinada pelo crítico Roberto Moura, falava do grande letrista e cronista Aldir Blanc, também colaborador do jornal, onde assinava ótimas crônicas. É uma bela análise sobre o grande mestre das palavras e seus parceiros na época, João Bosco e Paulo Emílio:
"Não, não foi uma grande entrevista e valeu exclusivamente pelo talento dos entrevistados. Pela própria posição vanguardista do suplemento Folhetim, da Folha de São Paulo, no contexto da imprensa brasileira, seria previsível que extraísse mais - pelo menos polemizando temas óbvios - da linha de passe formada hoje na MPB por João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio. Este último, aliás, mais tímido e menos conhecido, teve o seu grande talento e imenso potencial praticamente desprezados e, em consequência, Aldir comandou a linha de passe e deixou mofando os goleiros-entrevistadores como um centeralfe do passado. Foi o dono da bola e algumas de suas observações parecem iluminar todo este período dito das trevas na música brasileira, o que o letrista e contista veementemente repele e no que apoio.
Não, não, Folhetim. Esses meninos não vão 'ainda dar o que falar'. Vêm dando há anos (e, no caso de Aldir, seria conveniente lembrar sua participação no MAU, seus intermináveis festivais e seu definitivo Amigo É Pra Essas Coisas) e nem tão meninos são. Eu diria até que, do alto de seus trinta e poucos (somando os três deve dar um século de inspiração), estamos diante de três artistas absolutamente maduros, dos quais se sabe o que esperar e com os quais tudo é lícito discutir, sem recair no ramerrão da ingenuidade de artistas em formação.
É possível que eu e Aldir desafinemos em muitas coisas mas será sempre muito maior o números de coisas em que estamos permanentemente acordes - e sem trocadilho. Por exemplo, quando ele cita o semi-anonimato das coisas de Caymmi e a despreocupação absoluta do compositor em relação a isso como um ideal a ser perseguido. Recordo que, há uns dois anos, em entrevista às páginas amarelas da revista Veja, Caymmi declarava pretender compor 'uma música que se perdesse no ouvido do povo, que se tornasse uma coisa tão dele que ninguém mais se lembrasse de quem a fez'.
Aldir Blanc e João Bosco
De lá pra cá, citei esta frase algumas vezes (na verdade, me parece mesmo um padrão, assim como Carlitos está acima de Charlie Chaplin ou a Gioconda ultrapassou Leonardo da Vinci) e fico feliz de ver Aldir chegar à mesma conclusão por força de um raciocínio indiscutivelmente pessoal, pessoalíssimo: 'Bonito é ele, Caymmi, que fica lá, com aquela camiseta, aquele mar, aquele cabelo todo, enquanto numa gafieira qualquer você dança atraído pela música dele, mesmo sem saber que a música é dele. Esse é popular.'
A sutileza do pensamento de Aldir é que, ao mesmo tempo, ele não prega para o compositor, enquanto indivíduo, um comportamento passivo diante da sociedade e estabelece uma distinção que é simples (aliás, estas foram as declarações principais da entrevista e deveriam ter saltado para o título ou, no mínimo, para a abertura, que resultou um desastre). Quer dizer: 'a gente tem que compor paca, porque enquanto esta força estiver na rua, nós somos os compositores populares. Eu morro e o repertório continua, não tem jeito. Então, eu não tenho que reivindicar nada. A não ser como pessoa, mas aí já não é dever do compositor, e sim de qualquer sujeito que saiba que é uma pessoa política, né? Como tal, quero Anistia ampla e irrestrita, quero o meu dinheiro que é roubado paca, ainda hoje, pelas arrecadadoras, que não me pagam, por exemplo, teatro há dois anos. Agora, o que sou como compositor vai passar por cima disso tudo. E é claro que morrer de fome não é a glória, não. Chega desse tempo.'
Uma posição inatacável, tanto do ponto de vista estético (que não se escuda em ideologias para desculpar uma possível escorregadela) como do ponto de vista político (que não se furta a ter uma visão-de-mundo e externá-la sem receio, grupismo, oportunismo ou interesses menos nobres). No letrista e no cidadão, a mesma coerência que se verifica no contista, depois do lançamento, pela Editora Codecri, do original Rua dos Artistas e Arredores e seus personagens quase míticos a se moverem como doces fantasmas num habitat que - outro ponto de encontro entre o poeta e o crítico - nos é comum.
Outro reparo fundamental a uma espécie de consenso da inteligentzia nacional que Aldir Blanc faz dentro da maior lógica: 'na época do JK eu não faia música, eu era um garoto'. Esta frase conclui um argumento irrespondível sobre a discussão teórica imposta pela existência da Censura e por atividade artística desenvolvida apenas em eras mais amenas e favoráveis. Aldir explica que 'o outro lado que é tão falado, que poderia revelar talentos, eu desconheço. A situação tem uma hora que serve de capa para ocultar os falsos talentos. Então, discute-se como se nós conhecêssemos os dois lados da equação e eu não conheço.'
Baseado nisso, o que Aldir prega é o óbvio: que não se pode escolher a realidade em cima da qual se gostaria de trabalhar. O que é preciso é realizar alguma coisa, o possível, independente disso ser até, em determinadas circunstâncias, praticamente impossível. Este óbvio, porém, tem sido dificílimo de ser enxergado."

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