Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 9 de junho de 2017

Ednardo - Um Voo e um Berro de Iracema a Ipanema (1976)

Em 1976 Ednardo lançava o disco Berro, seu segundo disco solo, que sucedeu O Romance do Pavão Misteriozo, de 1974 e o disco coletivo do Pessoal do Ceará, lançado três anos antes. Ednardo na época estava estourado em todo o Brasil com Pavão Misterioso, tema de abertura da novela Saramandaia, de Dias Gomes. Na ocasião o jornal O Globo fez uma matéria sobre o lançamento em sua edição de 14/06/76, assinada por Tania Pacheco:
"De repente, na novela 'Saramandaia', uma música explodiu e invadiu a cidade, de Ipanema à Feira de São Cristóvão; o 'Pavão Misteriozo'. E Ednardo, um cearense de fala macia, 31 anos, que largou o diploma de engenheiro químico para ser compositor no sul, apareceu. De boné travesso, tranquilo, se despedindo das pessoas ainda bem nordestino - 'um cheiro pra você -, mas defendendo a sua música.
A canção da novela é a faixa de um elepê - 'O Romance do Pavão Misteriozo' - que não explodiu por injustiça (e a RCA nos deve uma regravação); 'Berro', seu novo disco, acaba de ser lançado. E Ednardo está aí, na sua 'Chegança', falando suas coisas, suas lutas, sua música.
FAIXA 1: PARTIDA
'Amanhã se der o carneiro/ o carneiro/ vou m'imbora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vem de lá/ e eu mesmo vou buscar/ e vou voltar em vídeo-tapes/ e revistas super coloridas'
No Nordeste, as coisas tão muito na cara da gente. A todo instante. É um cara que bate na sua casa, pede um esmola e agradece cantando... Uma vez, me arrepiei todinho: o cara chegou, pediu, dei a esmola, e ele cantou uma música tão forte, mas tão forte... Não me lembro como era, mas durante muito tempo ela me marcou. E tem o cordel, que funciona pra gente como uma espécie de jornal sertanejo, onde as pessoas chegam com atraso de muitos e muitos anos. São coisas que apaixonam, que você começa a 'fazer parte', a curtir esse transação.
(Só vejo sentido na arte se ela for colhida do povo e devolvida a ele. A arte elitista é uma tentativa furada de federalizar a arte. De criar o 'artista federal').
Então, esse cordel, quando eu li, me deu um 'clique', porque eu descobri um sentimento de liberdade muito grande dentro dele. Como no cordel do Romance do Pavão Misterioso. Pintou uma espécie de paralelismo entre essa liberdade e tudo que eu estava defendendo em termos de música, de ideias, e, depois, do 'circunstancialismo' das pessoas aqui no sul.
Isso tudo tá muito presente no meu primeiro elepê - 'O Romance do Pavão Misteriozo'. Embora as músicas aparentemente não tenham nada com o cordel, têm tudo, ao mesmo tempo. Porque elas foram feitas durante certo tempo de vivência. A gente em Fortaleza, nos bares, falando em vir pro Rio, que parecia ser a capital onde a gente poderia fazer o nosso trabalho. E elas foram pintando. Por isso, o disco conta tudo, desde esse tempo em que a gente queria fazer música, vir pra cá, até o momento exato de gravar, em 1974.
'Vai, meu filho, vai/ que eu lhe dou essa medalha assim/ como o seu avô me deu/ mas a força maior, você sabe/ está em você que nasceu'.
FAIXA 2: CHEGADA
'Sorrias/ e a tua voz, estranha estrada, amiga/  perdeu-se ao longe na partida/ e não ficou ninguém em teu lugar.'
Logo que a gente chegou, depois do entusiasmo da chegança, pintou a calmaria. Tudo parado. Não dava para vislumbrar como eu ia poder mostrar as músicas, chegar ao produtor, conseguir a gravadora.  E pintou também a nostalgia.
('Na parede, o calendário/ no calendário, outro dia/ e no dia a mesma espera/ de nada esperar um dia/ no umbral da porta, já torta/ a sombra, o sombrio olhar/ e no olhar coisas mortas/ que ninguém virá velar.')
Era impossível viver no presente e as pessoas se voltavam para o passado, para a nostalgia, pra poder sair do tempo tão escuro. Eu tinha vindo direto pro Rio. Fiquei aqui um ano, procurando sobreviver de música. Quer dizer: mais morrendo que sobrevivendo. Era 1971, e a barra foi pesada mesmo. Quando já estava faltando tudo, pintou um programa na TV Cultura, de São Paulo. A gente escolhia uma pessoa, e compunha sobre o sujeito. Pintava um cachê minguadíssimo, mas que ajudava a gente a sobreviver.
Do programa passamos à gravação do primeiro elepê: eu, Belchior, Rodger e Teti. Foi o 'Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem', que apelidaram, simplesmente, de 'Pessoal do Ceará'.
Depois é que veio o 'Pavão', meu primeiro disco sozinho, em que pude finalmente, dizer minhas coisas. E romper com a nostalgia.
'De qualquer jeito é cedo/ de qualquer jeito há medo/ de qualquer jeito/ a força vem do braço/ ou da palavra sai/ corre/ toca o alazão, meu pai/ na poeira cinzenta o sol/ e o cavalo vai/ Estrela branca na testa/ alazão/ me veste de perneira e gibão/ arranca  o meu sorriso do chão/ abre os meus braços na imensidão'.
FAIXA 3: CLARÕES
'Há um direito e um torto, a cavalo ê/ eu não estou bem morto, cavalo ê/ corre na areia, no vento, cavalo ê/ no mato seco do tempo, cavalo ê/ pula da torre da igreja/ pula por cima da mesa.'
'Pavão' foi recebido pelo público com um silêncio involuntário. As gravadoras - não só a RCA, não! - querem faturar em cima do sucesso. Elas não dão crédito à gente. Então o disco não teve divulgação. Eu pedia poster, e não davam. Tive que usar os velhos, que a Continental tinha me dado, do disco do 'Pessoal do Ceará'. Agora, depois que a música foi para a novela, que todo mundo começou a cantar, me deram 500 posters. Mas, antes, eles não acreditavam. Ninguém acreditava.
Então, em 1975 eu virei uma caldeira. Uma caldeira que você enche de lenha, começa a botar fogo, e não tem válvula de escape. Fui acumulando as coisas, sem poder botar fora. E isso é o tipo de coisa que pode funcionar muito legal, mas também pode contribuir pra o aniquilamento do criador. Porque você pensa mil coisas e não consegue extravasar. Conheço muita gente por aí que tem coisas belíssimas, pra dizer, pra mostrar, e não consegue. E isso leva às vezes a um envelhecimento das pessoas.
('Uma a uma/ as  coisas vão sumindo/ uma a uma se desmilinguindo/ e o mar engolindo lindo/ e o mal engolindo e rindo').
Então, 75 foi um ano de tentativas em várias áreas - o Festival da Globo, a RCA, tudo. Houve até uma tentativa heroica de fazer shows no pau e pedra, transando microfones, emendando, indo nas universidades, me oferecendo, acertando tudo, arranjando os instrumentos, e fazendo os shows. Foi um murro violentíssimo, isso tudo. Um murro que transparece muito no 'Berro'. Por isso, inclusive, esse título. Porque ou você faz arte, ou é o gigolô da própria arte. E o que muita gente não entende, principalmente as gravadoras, é que quando você institucionaliza uma coisa, cristaliza; e aí se acomoda, tem medo da mutação, de se despedaçar. Quando nesse despedaçar é que está justamente a chave do segredo.
FAIXA 4: BERRO
'Consuma tudo em suma/ definitiva e completamente/ na destruição somente/ nesse absurdo aniquilamento/ é que talvez surja/ um outro novo momento.'
'Berro' é o resultado disso tudo; é meu grito, minha raiva. Como é que você quer que a gente seja terno, passando um ano fazendo show emendando fiozinho? Minha música é meu momento. Não há fabricação para alcançar parada ou fugir dela. Só tem eu mesmo. Se o sucesso chega fico satisfeito. Se saio de casa e vejo passar uma lavadeira cantando o 'Pavão', me emociono até as lágrimas. Mas não vou compor pensando nisso não.
Tem uma coisa que um cara de Brasília sacou, que é muito verdade: é necessário que a gente redescubra a simplicidade.. No falar, no fazer. Porque com  a situação brasileira, os compositores começaram a sacar toda uma linguagem simbólica, cheia de metáforas para escapar da tesoura. Acho que até certo ponto isso foi bom, mas é necessário redescobrir a simplicidade.
E a transa emocional do 'Berro' foi muito raivosa. Foi todo o ano de 75 para ser colocado num elepê! o Toninho foi lá pra casa e eu cantei umas 50 músicas para ele. E fomos cantando, cortando. Teve música - a 'Cauim', que foi cortada na hora de editar o disco. A gente tinha até gravado, e vimos que os sulcos iam ficar muito apertados, prejudicando a qualidade do elepê, e desistimos.
'Faz muito tempo que eu não vejo o verde/ daquele mar quebrar/ nas longarinas da ponte velha/ que ainda não caiu'
FAIXA 5: LONGARINAS
'Cada braça de caminho/ um soluço de saudade/ toda vereda da roça/ vai descambar na cidade'
Agora, tem gente que me acusa de 'nostalgia' aguda, sempre que falo do Ceará. Não é. Quando a gente mora no Nordeste é bombardeado o tempo todo com o Rio e São Paulo, com as coisas do 'sul-maravilha'. Aprende a cantar a garota de Ipanema, Copacabana, a princesinha do mar, antes de cantar a Praia de Iracema. E agora, se eu gravo falando  na praia de Iracema, dizem que é saudosismo agudo. Mas eu acho que para se universalizar a gente não tem que romper com as próprias raízes. Tem é que e aprofundar. Tanto faz falar na fome do Nordeste, como na de Bangladesh. Então, por que não falar das coisas de lá, pelo amor de Deus? Eu acho que se eu sou de lá, e agora estou aqui, tenho é que aproveitar as duas coisas e fazer a síntese.
Por isso, no 'Berro', eu procuro, inclusive, cantar coisas importantes de lá, que nem chegaram muito aqui, como o movimento 'Padaria espiritual', um negócio danadíssimo, muito sério, que atingia principalmente a área cultural, na transição entre Brasil Império e Brasil República..
Canto isso e canto tudo, porque nunca calco minha música num objetivo definido . Vou fazendo o que está pintando na minha vida. Vou trabalhando sem pensar a longo prazo. O que eu quero mesmo é ter condições de fazer música. Cantar e dizer as coisas que me importunam de perto. Ou as coisas que eu gosto de perto.
'Somos umas vacas/ retalhados nesse açougue/ Do boi só se perde o berro/ e é justamente o que eu vim apresentar' "



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