Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Airto Moreira em Visita ao Brasil (1977)

O percussionista Airto Moreira deixou o Brasil rumo aos Estados Unidos, no final dos anos 60, e lá construiu uma brilhante carreira. Airto tocou com nomes mais do que consagrados do rock e do jazz, como Miles Davis, Santana, Chick Corea, John McLaughlin, só para citar alguns. Ao lado de sua esposa, Flora Purim, Airto ganhou respeito, prestígio e fama no circuito do jazz, e passou a ser um músico muito requisitado em gravações. Numa de suas vindas ao Brasil, em 1977, o músico conversou com Antônio Carlos Miguel e Nena Mujica, do Jornal de Música, que publicou uma matéria intitulada "Airto de volta (por pouco tempo) ao país da burocracia":
Airto Moreira esteve no Brasil durante 15 dias (final de junho e início de julho) para resolver alguns problemas pessoais, rever os familiares e acertar detalhes com a sua nova gravadora, a Warner (WEA). Aproveitamos sua estada para esta entrevista, onde ele mostra que a fama e o sucesso nos Estados Unidos não o alienaram da situação brasileira, pelo contrário, ele continua ligado no que acontece aqui. No dia da entrevista Airto tinha passado toda a tarde tentando conseguir que sua filha, Diana, de 4 anos, viajasse sem pagar os 16 mil(*): ela tinha passado 3 meses na casa dos avós enquanto Airto e Flora viajavam numa grande excursão. Mesmo tendo passaporte americano (ela nasceu lá), por ser filha de brasileiros teria que tirar um passaporte brasileiro e deixar o tal depósito. Apesar de toda esta tarde com os burocratas Airto ainda teve tempo (e saco) para esta entrevista. Entre os inúmeros problemas que o trouxeram havia o de algumas músicas suas que estavam sendo usadas sem a sua permissão:
'A Globo estava usando uma música minha como fundo prum personagem da novela 'O Bem Amado', esta música foi gravada no disco Free, o problema é que eles nunca pagaram os direitos autorais; o mesmo está acontecendo com uma música do Hermeto que gravei, ela está sendo usada num desses comerciais do governo que passam antes dos filmes. Também não pediram a nossa autorização. Então eu vim resolver isto e procurar uma pessoa que me represente e passe a defender meus interesses'.
Para Airto, que já está fora do Brasil há 10 anos, a situação do músico brasileiro ainda é muito precária, ele que emigrou pra os Estados Unidos em busca de melhor campo de trabalho observa que não houve melhora:
'... e em certos setores as coisas pioraram mais, é o caso da falta de liberdade de expressão, quase ninguém tem direito a falar o que pensa. Os poucos que ainda conseguem dizer alguma coisa são Chico, Milton,, e até mesmo Hermeto, que apesar de não cantar faz um tipo de música que expressa esta vontade de livre criação.'
Uma opção, ainda hoje, seria buscar trabalho no exterior: para Airto, depois da época da bossa-nova estaria ocorrendo agora uma nova era fértil para a música brasileira, o público americano pede um novo som e somos nós que temos as melhores condições. A sua nova gravadora, Warner, também tem estimulado bastante a nossa música. Airto não sente necessidade de se radicar aqui, apesar de ter interesse em que sua música seja mais conhecida pelo público brasileiro:
'Todo artista tem desejo de ser reconhecido no seu país de origem, mas por enquanto não houve interesse nem dos produtores nem meu: eles preferem trazer artistas como Rick Wakeman, um menino que enche o Maracanazinho, mas vai assistir a nossos concertos de gravador na mão, porque ele está ligado no nosso som, do mesmo modo que John McLaughlin, o Wayne Shorter ... Então o dia em que alguém se interessar realmente eu venho na hora, mas não é pra tocar no Municipal, eu quero é tocar pra muita gente, com preços bem populares.
Airto, que tocou em discos de Miles Davis, Gato Barbieri, Chick Corea, Weather Report, John McLaughlin, Tom Jobim, entre outros, parou de trabalhar como músico de estúdio. Agora ele só participa quando tem uma ligação mais pessoal com o artista, este é o caso do disco com o grupo uruguaio OPA.
'Eu mantive contato com eles na época que fazia parte do grupo Return To Forever. Chick (Corea) estava partindo pruma música mais técnica, uma coisa muito ensaiada, rápida e eletrônica, eu prefiro um som mais espontâneo; como Chick partiu pra essa, eu saí para formar o meu próprio grupo. Foi quando um amigo diretor de cinema me falou de um trio uruguaio que tocava muito bem música brasileira num clube em New Jersey. Na hora eu não me interessei muito, afinal uruguaio tocando música brasileira, né? Só duas semanas depois fui assistir e gostei do lance, eles estavam tocando uma música minha, conheciam todo meu trabalho, o de Edu Lobo, Hermeto, então eu os chamei para fazer parte do grupo que gravou 'Fingers'. Desde então a gente tem se apresentado junto, só que não é uma coisa rígida, às vezes eu vou prum lado, e eles pra outro.'
No bate-papo abordou-se a situação do cenário musical americano, tentamos ver o o que é que sobra de toda a confusão: rock, jazz, funk, punk, música latina. A crítica americana tem 3 definições mais em uso pra classificar o som de Airto: 'latin-rock', 'jazz' e 'música progressiva'; este, ele acha mais apropriado, 'pois é mais abrangente, não fecha, propõe um futuro, uma progressão como o próprio nome diz'. Milton Nascimento ainda estaria num estágio inicial, 'ainda não é uma coisa muito popular', seu trabalho é mais curtido entre os músicos e pessoas que conheceram seu trabalho com Wayne Shorter (no disco 'Native Dancer'). O aumento desta popularidade depende de uma maior batalha, fazer shows, divulgar mais, entrar em contato com o público americano. Neste ponto me lembrei de uma entrevista que juntamente com o jornalista Brother fiz com o saxofonista Gato Barbieri. Nesse papo ele se declarou cansado desta batalha toda, a maratona de shows para a divulgação de dois discos por ano, tudo um processo muito desgastante. Airto não concorda com Gato:
'Eu gosto de tocar a música que estou fazendo, gosto dos músicos que tocam comigo e não faço isso por obrigação. O som do Gato foi produzido (N.R. O disco citado é 'Caliente', com produção de Herb Alpert) e ele não curtia totalmente o que estava fazendo, não foi um trabalho que ele tivesse autonomia. Eu produzo meus próprios discos ou então escolho o produtor, esta é uma cláusula de que faço questão nos meus contratos. O mesmo acontece com Flora, é ela também quem escolhe o produtor, as músicas, o estúdio, os músicos.'
Airto e Flora Purim
Não haveria nada de novo acontecendo no cenário musical americano, o que há é uma mistura de tudo que é música'. Airto se disse fã de Jeff Beck, um músico de rock que se aproximou do jazz, 'as duas coisas que continuam sendo as mais fortes, o funk já é uma coisa mais produzida: Os músicos de jazz viram a força do rock e tentam se aproximar dele, pegam mais vitalidade. Já o músico do rock, que é mais novo, tenta se aprimorar incorporando o jazz; os latinos se aproximam dos dois, eu acho que é isto o que estou fazendo.'
Até Herbie Hancock que passou um tempo fazendo (ou faturando com funk, está de volta ao jazz. Para Airto o funk é muito limitado, uma música feita em série, quase maquinal...
E o punk-rock?
Eu acho que o punk-rock é o final do lance, o final de um processo todo, o restinho o que sobrou do acid-rock...'
No final, depois de todo o papo, Airto se lembrou:
'As pessoas percebem que a arte brasileira tem muita força, mas ninguém procura saber os motivos, este é um lance que ninguém me perguntou. A arte aqui no Brasil é muito mais forte que nos Estados Unidos (em criatividade, em amor, em alma...) porque aqui é uma necessidade, enquanto lá é um produto, aqui as pessoas têm necessidade de se comunicar umas com as  outras, é uma transa bem mais chão que lá, é disto que eles sentem falta' "

(*) Na época, para se fazer viagens ao exterior, tinha que se fazer um depósito compulsório nesse valor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário