Nelson Cavaquinho é um daqueles nomes que sempre farão parte de um seleto time de grandes criadores, reconhecidos quase unanimemente por todos aqueles que apreciam música. Autor intuitivo, e possuidor de uma invejável capacidade de expressar uma musicalidade bem pessoal, Nelson, por isso mesmo é um daqueles compositores que podem ser facilmente identificados como autor de suas músicas ao serem ouvidas pela primeira vez. O seu toque de violão é outra característica bem pessoal, uma forma diferente e intuitiva, desenvolvida por ele mesmo, e que já chegou a ser elogiada até por Egberto Gismonti em um depoimento sobre Nelson em um programa de TV. A matéria que destaquei , inclusive, faz um comentário sobre um disco antigo seu, em que os produtores o proibiram de tocar seu violão, justamente por sua maneira diferente de tocar. A matéria abaixo foi publicada no jornal Folha da Manhã, de Porto Alegre em 18/12/73, e é assinada pelo jornalista e crítico Tárik de Souza:
"A voz é irremediavelmente rouca e difusa: raramente alcança o tom exato da música. O estranho violão toca sempre contrário à linha melódica, uma espécie de execução pelo avesso que às vezes lembra harmonizações orientais. E as letras contam histórias banais de maneira requintada e surpreendentemente arrojada. O autor deste equilíbrio entre forma, intenção, conteúdo e execução chama-se Nelson Antônio da Silva, filho de uma lavadeira e de um tocador de tuba da Polícia Militar do Rio. Mais conhecido por Nelson Cavaquinho por causa de um instrumento que quase nunca usa. Nelson grava seu terceiro e mais poderoso elepê de mais de 40 anos de carreira vivida menos no ambiente artístico que nos botequins cariocas. 'Nelson Cavaquinho' (elepê Odeon) revela todas as faces conhecidas do magnífico compositor e algumas ainda surpreendentes mesmo para quem o conhece agora no auge da carreira, consagrado aos 62 anos de idade. Por exemplo, Nelson apresenta e canta em dueto com o parceiro Guilherme de Brito algumas das principais músicas que fizeram juntos: A Flor e o Espinho, Se Eu Sorrir, Quando Eu Me Chamar Saudade e Pranto de Poeta. Além disso, toca cavaquinho - coisa que sempre se recusa a fazer nos shows - em seu choro 'Caminhando', estilo de música que o lançou ainda na década de 30, no bairro da Gávea no Rio. À vontade em disco pela primeira vez (antes gravou um elepê cheio de arestas numa gravadora que faliu e um disco onde foi proibido de tocar violão, na RCA) Nelson desfia suas cenas de marginalidade, boemia, ornadas por imagens que invariavelmente descrevem mulheres, flores e cenas de morte. 'Se eu for pensar muito na vida/ morro cedo, amor/ meu peito é forte/ nele tenho acumulado tanta dor/ as rugas fizeram residência no meu rosto' (Rugas, composta em 1941). 'Noites eu varei/ mas cada amor me fez um rei/ um rei vadio/ um poeta tão sem lei' (Rei Vadio). 'Mas depois que o tempo passar/ sei que ninguém vai se lembrar que eu fui embora/ por isso é que eu penso assim/ se alguém quiser fazer por mim, que faça agora' (Quando Eu Me Chamar Saudade). Acompanhado de conjunto e coro, Nelson e seu violão arrevesado contam trechos de uma das carreiras mais fantásticas e substanciosas da música brasileira.
Nascido na rua Mariz e Barros e criado na Lapa, Nelson viveu desde o início num ambiente de músicos: além do pai, seu tio adotivo era violonista e levava o instrumento para tocar em sua casa. Nelson havia fabricado um arremedo de violão (uma tampa de caixa de charutos com barbantes esticados) mas depois de fazer parte do primário foi obrigado a começar a trabalhar para ajudar a sustentar a família.
Em 1929, o Rio tinha cerca de 50 mil operários, concentrados principalmente na Gávea, onde Nelson foi morar também com a família e tornou-se tirador de espolim (resíduos têxteis) numa fábrica de tecidos. Ficou algum tempo como eletricista no centro da cidade e a seguir trabalhou numa outra fábrica como operário antes de casar ('sem dinheiro nem pra comprar sabão') e ingressar na Cavalaria da Polícia Militar, definindo os rumos de sua vida. Seria exatamente a que levou durante tantos anos até ser descoberto na década de 60 cantando para estudantes e classe média no restaurante Zicartola, do compositor Cartola e sua mulher Zica. Cumprindo um longo roteiro de bares todas as noites, passando às vezes três dias sem ir em casa dormir, ele apesar da rotina policial, frequentava o morro de Mangueira e compunha sambas depois de ter sido um apreciável chorão na época em que morava no reduto deste gênero de música, a Gávea. No morro, Nelson acaba tornando-se um compositor e vivendo de música apesar da dificuldade de acesso aos meios de divulgação. Prefere vender seus sambas a ter que enfrentar os corredores das rádios. Ainda assim, na década de 40, Cyro Monteiro gravou alguns sambas onde o autor aparece sempre espremido entre torrentes de parceiros, como Bilhetinho (com Augusto Garcez e Arnô Canegal), Apresenta-me Aquela Mulher (com Garcez e G. Oliveira), Não Te Dói a Consciência (com Garcez e Ary Monteiro) e assim por diante. Vivendo com dificuldade até a consagração atual. Nelson era mais a figura lendária cujas histórias pareciam sempre inacreditáveis, como a corrida numa das muitas noites de boemia ainda como polícia-militar, quando seu cavalo voltou sozinho para o quartel, enquanto o dono comemorava numa tendinha.
Marcado de contradições e surpresas, Nelson Cavaquinho (considerado um violonista invulgar por Egberto Gismonti e o violonista Turíbio Santos) é um dos casos isolados do samba carioca: uma escola que começa e termina nele, apesar da confessada admiração de Paulinho da Viola, por exemplo. Nelson Cavaquinho é único, porque sua música está diretamente ligada à sua vivência movimentada, qualidade e substância que não se encontra com facilidade."
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir''Quando eu me chamar saudade'',título que serve a todo mundo.
ResponderExcluir''Quando eu me chamar saudade'',o título serve pra todos.
ResponderExcluir