"Baiana de Salvador, 27 anos, oito irmãos, família classe média, signo de Capricórnio, Simone começou a cantar 'vinda da rua, pega na rua, como uma pessoa qualquer.' Já é bastante conhecida essa iniciação - o encontro com um diretor da gravadora Odeon numa festa, o teste, a aprovação, o LP de estreia, 'Simone', vendendo o bom número de cinco mil cópias.
- E tem aquela história de ser jogadora de basquete. Pelo amor de Deus, nem fala mais nisso, se não vou ser conhecida a vida toda como a jogadora de basquete que canta.
Feito o primeiro disco, Simone foi viajar.: Europa, Olympia inclusive, Canadá, Estados Unidos ('lá tinha um cara, um dos diretores do Madison Square Garden, que queria fazer de mim uma estrela. Me dava tudo, todas as condições. E assim que eles te compram, sabe? Mas eu não topei, não'). Depois, América Latina com Vinícius e Toquinho.
Mais dois discos no Brasil: 'Quatro Paredes', de uma beleza amarga, claustrofóbica (venda: dez mil cópias) e 'Gotas D'Água', de piques e fundos, trabalho de transição (venda: 15 mil cópias). E o sucesso de 'O que Será,que Será', tema do filme 'Dona Flor', gravação tumultuada e tão por acaso quanto o começo de sua carreira.
- Eu nunca pensei em mim como uma artista, sabe? - ela diz devagar enquanto come às pressas um almoço tardio. - Não foi assim como Bethania, que sempre quis ser cantora, sempre se imaginou no palco, essas coisas. Eu gostava de cantar, mas não pensava muito nisso. Foi uma coisa que pintou. Talvez por isso eu não me afobe tanto.
Ao seu lado Glorinha, misto de amiga, confidente ('há sete anos, viu, há sete anos') e assistente de produção, exclama, exaltada, entre um e outro pedaço de frango na chapa:
- A Simone é muito gente, viu, mas é gente demais. Por isso é que não admite que é uma estrela. Mas é sim, viu? Só que é simples, viu, é muito gente mesmo.
Simone não retruca, sorri, os ombros soltos num breve momento de descontração. Clarinha, amiga e repórter da 'Tribuna da Bahia' - autora da matéria mais festejada da tarde, 'Surge uma superestrela' - começa a empacotar roupas e maquiagem. Simone vai trocar as botas pelas azuis, que usa em cena, e escovar os dentes. Monica Lisboa continua no sofá, serena:
- É engraçado como o artista não aceita a ideia de ser manipulado. Mas eu já vi isso acontecer antes. Eu sei como transar a cabecinha deles, quando a pauleira mesmo começa.
- Pelo amor de Deu, deixa eu pegar na Simone. Se eu não pegar eu morro. Só um pouquinho, pelo amor de Deus!
A voz de mulher vinha de longe - de onde? - no meio da massa humana densa, imensa, compacta. Mãos, rostos, gritos - 'diz que sou seu sobrinho, deixa eu entrar, aí, a Simone, meu Deus, deixa eu olhar de perto.'
Simone abre caminho na multidão. com os cotovelos, jogadora experiente e astuta no caminho da cesta. Desde que o carro se pusera a caminho, não dissera uma palavra. Só na saída do hotel - teria sido ali? - para confidenciar;
- Eu sei que muita gente vai para ver o Belchior. Não tenho ilusões não.
No camarim pequeno, pobre, abafado, repleto de corbeilles - é a primeira vez que isso acontece no Seis e Meia', comenta Judy, sócia de Mônica na empresagem - ela se despe diante do espelho, em silêncio. De longe chegavam uivos, urros, sons surdos. O clima é apocaliptico. Seu único comentário vem depois de longo silêncio meditativo.
- Eu não lhe falei que o problema é a desorganização? Ouve só. É um absurdo. Por que deixar essa gente toda esperando aí fora? Abre as portas, deixa entrar. Quem não couber, vai embora e pronto. O pessoal é ótimo, não dá problema nenhum. Não tive nenhum problema esses dias todos.
Glorinha e Clarinha passam a roupa de cetim azul claro - calça tipo jeans, colete, camisa branca salpicada de paetês - no chão mesmo, sobre uma toalha. Monica e Judy se agitam, entram e saem, imprecam. Só Simone está impassível diante do espelho, o rosto denso, muda. Pinta-se devagar, com gestos precisos - base sombra escura, kajal, batom bem vermelho ('é uma pena, na segunda música já está tudo borrado'). Faz exercícios para as cordas vocais - 'estou rouquinha, o que será?'. Veste-se com lentidão ritual. Corda de violino inteiramente retesada, quando mais aumenta o tumulto, lá fora, mais silenciosa e imóvel é sua atitude. Tensão absoluta.
Faltando meia hora para o espetáculo, pede para ficar sozinha. E tranca a porta do camarim.
A lente do fotógrafo perscruta a multidão: o João Caetano está literalmente superlotado (1.713 pagantes, se saberia depois). E um público notável: rostos brancos, pretos, louros parafinados, bleques, comportados, de óculos, mas todos, todos mesmo, com, no máximo 20 e poucos anos de idade. Todos. E uma sensação estranha. Semelhante só em shows de rock e nos idos festivais universitários, naquele mesmo teatro, internacional da Record. E, em nenhum, com aquela diversidade de origem e comportamento. Simone tinha razão: esperam o espetáculo com alegria e sem tumulto, acompanhando o som de fita que vem das caixas com palmas e arremedos de dança. Na coxia, Monica Lisboa, mais calma da agitação pré-show, comenta:
- Alguma coisa está acontecendo, eu tenho certeza. Veja isso (aponta para a plateia), foi assim todos os dias. E um novo público, um novo movimento, uma nova coisa. O rock está se esvaziando mesmo e as pessoas estão querendo outras coisas. Sacaram que aquilo tudo, aqueles quilos de aparelhagem e tudo mais, era mesmo uma coisa inteiramente fora da nossa realidade.
Monica não diz - ainda - com clareza, mas é evidente que ela está preparando Simone para essa coisa, para os braços e ouvidos da imensa plateia da qual esses 1.700 são apenas uma pálida amostra.
Seis e meia em ponto os músicos - Paulinho nos teclados, Pigmeu no baixo, Duda na bateria, Otávio no sax e flauta - atacam o tema de abertura. E, sob a massa de assobios, palmas e gritos de 'linda', 'gostosa', Simone entra no palco com o 'O que será, que Será'. Sob as luzes, na roupa de cetim, parece menor e mais jovem: uma garota, como tantas na plateia. Tensão ainda há: nas mãos grandes, ossudas, ainda crispadas. Mas com duas ou três músicas já é senhora do palco. O público canta junto com ela, conhece as letras e aplaude determinados versos. Simone agradece a paciência e força de vontade de sua plateia, explica que a linda 'Jura Secreta', de Sueli Costa e Abel Silva, é seu auto-retrato. E dá a 'Sangue e Pudins', de Fagner e Abel, uma interpretação inesquecível, veemente, grito parado no ar. 'Talvez se eu arrancasse da minha língua o sinal/ talvez se eu inventasse o juízo final'. O público aplaude em delírio. O público entende.
Atrás de sua lente, o fotógrafo comenta, observando as reações da plateia:
- É impressionante a imagem que a Simone projeta. É a figura de uma nova mulher forte, agressiva, jovem. Por isso as meninas se identificam com ela.
Há mais flores no camarim. Todas com cartões assinados por mulheres.
- Até eu ganhei - Monica Lisboa ri, divertida. Simone está saindo correndo para Niterói, tirando os restos borrados de pintura do rosto. Não parece cansada. Nem tensa. O ciclo todo recomeçará, daqui a pouco, mas agora ela sorri o primeiro sorriso da tarde e da noite, e me estende uma das caixas de flores.
Não é minha, mas é como se fosse. Queria que ficasse pra você.
E depois;
- Viu como foi tudo bem? Viu como eles são maravilhosos?
- Você é que é maravilhosa, Simone - Glorinha grita, empolgadíssima.
Monica Lisboa fecha o cortejo, pensativa, a caminho do carro e da ponte. Comento como Simone amadurecera no palco e se tornou capaz de até controlar a plateia com um gesto - como fizera no meio de uma música, quando uma falha no som despertara um princípio de vaia transformado em aplausos com um aceno - e como ela negava com veemência sua posição de ídolo. Mônica tem um meio sorriso na sua resposta:
- Mas ela é. Só que se recusa a ver isso, ainda está assustada, acredita que pode viver como uma pessoa qualquer, daqui pra frente. No fundo, acho que ela sabe que não. Mas por enquanto não quer encarar essa barra.
Uma pausa- É. Eu sei bem como é isso.
Simone abre caminho na multidão. com os cotovelos, jogadora experiente e astuta no caminho da cesta. Desde que o carro se pusera a caminho, não dissera uma palavra. Só na saída do hotel - teria sido ali? - para confidenciar;
- Eu sei que muita gente vai para ver o Belchior. Não tenho ilusões não.
No camarim pequeno, pobre, abafado, repleto de corbeilles - é a primeira vez que isso acontece no Seis e Meia', comenta Judy, sócia de Mônica na empresagem - ela se despe diante do espelho, em silêncio. De longe chegavam uivos, urros, sons surdos. O clima é apocaliptico. Seu único comentário vem depois de longo silêncio meditativo.
- Eu não lhe falei que o problema é a desorganização? Ouve só. É um absurdo. Por que deixar essa gente toda esperando aí fora? Abre as portas, deixa entrar. Quem não couber, vai embora e pronto. O pessoal é ótimo, não dá problema nenhum. Não tive nenhum problema esses dias todos.
Glorinha e Clarinha passam a roupa de cetim azul claro - calça tipo jeans, colete, camisa branca salpicada de paetês - no chão mesmo, sobre uma toalha. Monica e Judy se agitam, entram e saem, imprecam. Só Simone está impassível diante do espelho, o rosto denso, muda. Pinta-se devagar, com gestos precisos - base sombra escura, kajal, batom bem vermelho ('é uma pena, na segunda música já está tudo borrado'). Faz exercícios para as cordas vocais - 'estou rouquinha, o que será?'. Veste-se com lentidão ritual. Corda de violino inteiramente retesada, quando mais aumenta o tumulto, lá fora, mais silenciosa e imóvel é sua atitude. Tensão absoluta.
Faltando meia hora para o espetáculo, pede para ficar sozinha. E tranca a porta do camarim.
A lente do fotógrafo perscruta a multidão: o João Caetano está literalmente superlotado (1.713 pagantes, se saberia depois). E um público notável: rostos brancos, pretos, louros parafinados, bleques, comportados, de óculos, mas todos, todos mesmo, com, no máximo 20 e poucos anos de idade. Todos. E uma sensação estranha. Semelhante só em shows de rock e nos idos festivais universitários, naquele mesmo teatro, internacional da Record. E, em nenhum, com aquela diversidade de origem e comportamento. Simone tinha razão: esperam o espetáculo com alegria e sem tumulto, acompanhando o som de fita que vem das caixas com palmas e arremedos de dança. Na coxia, Monica Lisboa, mais calma da agitação pré-show, comenta:
- Alguma coisa está acontecendo, eu tenho certeza. Veja isso (aponta para a plateia), foi assim todos os dias. E um novo público, um novo movimento, uma nova coisa. O rock está se esvaziando mesmo e as pessoas estão querendo outras coisas. Sacaram que aquilo tudo, aqueles quilos de aparelhagem e tudo mais, era mesmo uma coisa inteiramente fora da nossa realidade.
Monica não diz - ainda - com clareza, mas é evidente que ela está preparando Simone para essa coisa, para os braços e ouvidos da imensa plateia da qual esses 1.700 são apenas uma pálida amostra.
Seis e meia em ponto os músicos - Paulinho nos teclados, Pigmeu no baixo, Duda na bateria, Otávio no sax e flauta - atacam o tema de abertura. E, sob a massa de assobios, palmas e gritos de 'linda', 'gostosa', Simone entra no palco com o 'O que será, que Será'. Sob as luzes, na roupa de cetim, parece menor e mais jovem: uma garota, como tantas na plateia. Tensão ainda há: nas mãos grandes, ossudas, ainda crispadas. Mas com duas ou três músicas já é senhora do palco. O público canta junto com ela, conhece as letras e aplaude determinados versos. Simone agradece a paciência e força de vontade de sua plateia, explica que a linda 'Jura Secreta', de Sueli Costa e Abel Silva, é seu auto-retrato. E dá a 'Sangue e Pudins', de Fagner e Abel, uma interpretação inesquecível, veemente, grito parado no ar. 'Talvez se eu arrancasse da minha língua o sinal/ talvez se eu inventasse o juízo final'. O público aplaude em delírio. O público entende.
Atrás de sua lente, o fotógrafo comenta, observando as reações da plateia:
- É impressionante a imagem que a Simone projeta. É a figura de uma nova mulher forte, agressiva, jovem. Por isso as meninas se identificam com ela.
Há mais flores no camarim. Todas com cartões assinados por mulheres.
- Até eu ganhei - Monica Lisboa ri, divertida. Simone está saindo correndo para Niterói, tirando os restos borrados de pintura do rosto. Não parece cansada. Nem tensa. O ciclo todo recomeçará, daqui a pouco, mas agora ela sorri o primeiro sorriso da tarde e da noite, e me estende uma das caixas de flores.
Não é minha, mas é como se fosse. Queria que ficasse pra você.
E depois;
- Viu como foi tudo bem? Viu como eles são maravilhosos?
- Você é que é maravilhosa, Simone - Glorinha grita, empolgadíssima.
Monica Lisboa fecha o cortejo, pensativa, a caminho do carro e da ponte. Comento como Simone amadurecera no palco e se tornou capaz de até controlar a plateia com um gesto - como fizera no meio de uma música, quando uma falha no som despertara um princípio de vaia transformado em aplausos com um aceno - e como ela negava com veemência sua posição de ídolo. Mônica tem um meio sorriso na sua resposta:
- Mas ela é. Só que se recusa a ver isso, ainda está assustada, acredita que pode viver como uma pessoa qualquer, daqui pra frente. No fundo, acho que ela sabe que não. Mas por enquanto não quer encarar essa barra.
Uma pausa- É. Eu sei bem como é isso.
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