O festival de Woodstock, que aconteceu em agosto de 1969, tornou-se um marco da contracultura, um acontecimento sem precedentes não só no mundo do rock, mas em termos de comportamento e tantos outros fatores que retratam os anos 60, que estavam terminando. Em 1989, ao se comemorarem os 20 anos do festival, muitas matérias foram feitas em diferentes meios de comunicação - revistas, jornais, tvs, etc.
No domingo 20 de agosto daquele ano, a jornalista Ana Maria Bahiana escreveu um belo artigo sobre o evento, sob um ponto de vista extra-musical, na seção Rio Fanzine, do jornal O Globo. Segue abaixo a transcrição da matéria, intitulada "Saudade tem idade":
"Vi Woodstock pela primeira vez num cinema Rian cercado de choques da PM por todos os lados - todo mundo era uma malta suspeita nos primeiros anos 70. Havia uma profusão de calças boca-de-sino confeccionadas em legítimo tecido carne-seca comprado na rua da Alfândega. As pessoas vaiaram profusamente os trinados de Joan Baez e as discurseiras de John Sebastian, todo mundo ia comprar pipoca e dar uma voltinha no banheiro enquanto os bem-nutridos hippies americanos desfiavam seus depoimentos. Os grandes aplausos iam para o 'See me feel me' do Who, o 'I'm goin' home' do Ten Years After e, é claro, a performance de Jimi Hendrix.
Meses depois, ouvindo o caríssimo álbum-triplo, importado, comprado com mais quatro melômanos, um amigo meu jurava ter ouvido entre os sulcos, alguém gritar, em nítido português, 'Mete bronca, cara'.
Pronto, disse tudo. Agora já podemos passar para as décadas seguintes?
A importância de Woodstock, ou dos anos 60, para mim, está exatamente onde sempre esteve, nessa fotografia polaroide que acabei de arrancar dos bancos abarrotados da minha memória. Naquele instante, em alguma tarde de 1970, 1971, 1972, tudo aquilo deve ter sido importantíssimo para mim, e influenciado diretamente o tipo de escolhas que fiz e que definiram toda a minha vida. Agora, pelo amor de Deus, isso foi há 20 anos, minha gente. A pessoa que eu fui, a pessoa que nós fomos, o país e o mundo que nós experimentamos não existem mais. Será que não dava pra gente largar o cobertor sebento da choradeira nostálgica e tentar avançar, nem digo para o próximo século, mas pelo menos até 1989?
Se existe um único valor que devemos estar recordando dos anos 60 é que nos anos 60 as pessoas tinham ânsia de futuro. A grande arrancada que vai dos Beatles até o pós-punk de 1982 tem um único grande traço comum: havia que se tocar o passado apenas na medida em que ele pudesse ser mola propulsora para adiante, informação e referência para o tempo presente. Repeti-lo, jamais. Mesmo porque, como os sábios gregos já diziam, é impossível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio.
Agora eu ligo a TV e, pateticamente, Woodstock está sendo exibido sob o gracioso patrocínio de uma marca de jeans, outra de canetas e uma nova comédia tolinha baseada nos anos 60. Abro jornais e revistas e dou de cara com uma multidão de figuras grisalhas, carecas, barrigudas, enrugadas, anunciando planos de turnê e repertório exatamente idênticos aos que tocavam quando tinha cabelo, músculos e caras bonitas. Pior que isso, cada última novidade que a mídia anuncia com fanfarras - pessoas cronologicamente jovens, pelo menos - soa, em meus cansados ouvidos, exatamente como uma versão requentada daqueles idos sons: psicodelismo de segunda mão, glam de segunda mão, até discoteca de segunda mão já me 'inventaram' como o cúmulo do píncaro da modernidade.
Sou só eu ou estamos todos sofrendo da paralisia aguda, com doentios sintomas nostálgicos?
Por que temos, hoje, pelo menos três gerações vivendo e operando sob o signo da saudade compulsiva é um mistério para mim. Às vésperas do terceiro milênio, tudo o que eu escuto na área tanto da produção quanto da análise da produção pop, é uma choradeira mal disfarçada de quem tem ou saudade dos anos 60, ou dos 70 ou, por incrível que pareça, dos 80 - daqueles primeiros 80, quando a escola era risonha e franca e a revolução Clash, Joy Division, Pretenders etc, parecia novo, viável.
E a nostalgia, além de paralisante, é inútil. Não apenas ela vai, sem dó nem piedade bloquear completamente qualquer esforço para se ir adiante, como em sua premissa básica está o fato que não se pode viver de novo o que já foi vivido. Nostalgia não é trazer o passado para o presente: ninguém traz o passado para o presente. O que traz é o veneno das coisas já vividas, experimentadas, encerradas, que não podem ser mudadas, que estão definitivamente lá, no passado, e jamais aqui, no presente.
Parte desse delírio coletivo de saudade tem a ver, eu suspeito, com a compulsão que se instalou, nestas últimas décadas, de 'ser jovem'. Estas três chorosas gerações forjaram-se sob a promessa de 'ser jovem para sempre' e 'morrer antes de envelhecer'. As duas coisas, é claro, são exceções e não regra, e o único jeito de ser realmente jovem para sempre é morrer antes de envelhecer, e ninguém, de fato, quer isso, quer? Mas viver é aceitar o ônus da mudança, da transformação, da maturidade, do envelhecimento; que são mudanças e transformações em si mesmas. Agarrar-se a uma juventude que se vive uma vez só, na esperança de que isso detenha a marcha natural da transformação, que é a maturidade, é tornar-se o pior tipo de criatura humana: a pessoa cem por cento estagnada, esclerosada, pateticamente abraçada a seu 'certificado de juventude' ('Ah, os anos 60 é que eram...'; 'ah, o punk é que era...') desatenta ao fato de que seu corpo, e seu mundo estão mudando à sua volta.
O mundo que se desenha na última década dos anos 90 me parece absolutamente fascinante, e eu gostaria de guardá-lo com o mesmo tipo de atitude da geração mais jovem e mais ousada que este século conheceu - a geração dos anos 10 e 20, que produziu esta garotada esperta: Picasso, Cocteau, Miró, Casals, Einstein, Stravinsky, Buñuel, Henry Miller, Anais Nin, Amelia Earhrdt. Os próprios conceitos de música estão mudando, com a irremediável invasão de samplers, midis e sequenciadores, exigindo uma nova mente analítica, novos ouvidos, novos conceitos de valores como 'desempenho' e 'gosto'. Já estamos ouvindo 'música' que realmente não está lá, no sentido tradicional da palavra, assim como estamos vendo imagens que, sampleadas da realidade, não são a realidade ( como a sequência de seis minutos que a Industrial Light and Magic criou para o filme "The Abyss').
Muito em breve, o desafio do meio ambiente será um tipo de escolha e de reflexão que ninguém poderá evitar; a ciência está alargando cada vez mais os limites entre 'vida' e 'morte'; a União Soviética está se transformando de 'bandido' em 'mocinho'; as relações, inclusive culturais, entre o Primeiro e o Terceiro Mundo estão cada vez mais complexas e perigosas - países inteiros estão falando línguas que não existiam há 50 anos; como o híbrido de inglês e espanhol que se escuta em várias cidades americanas hoje. E nós não sabemos o que existe no fundo das falhas geológicas oceânicas.
Ufa. Para começar está bom, não está? Que tal, agora, acertar o relógio, mudar as páginas do calendário e, de uma vez por todas, despertar?"
Se existe um único valor que devemos estar recordando dos anos 60 é que nos anos 60 as pessoas tinham ânsia de futuro. A grande arrancada que vai dos Beatles até o pós-punk de 1982 tem um único grande traço comum: havia que se tocar o passado apenas na medida em que ele pudesse ser mola propulsora para adiante, informação e referência para o tempo presente. Repeti-lo, jamais. Mesmo porque, como os sábios gregos já diziam, é impossível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio.
Agora eu ligo a TV e, pateticamente, Woodstock está sendo exibido sob o gracioso patrocínio de uma marca de jeans, outra de canetas e uma nova comédia tolinha baseada nos anos 60. Abro jornais e revistas e dou de cara com uma multidão de figuras grisalhas, carecas, barrigudas, enrugadas, anunciando planos de turnê e repertório exatamente idênticos aos que tocavam quando tinha cabelo, músculos e caras bonitas. Pior que isso, cada última novidade que a mídia anuncia com fanfarras - pessoas cronologicamente jovens, pelo menos - soa, em meus cansados ouvidos, exatamente como uma versão requentada daqueles idos sons: psicodelismo de segunda mão, glam de segunda mão, até discoteca de segunda mão já me 'inventaram' como o cúmulo do píncaro da modernidade.
Jefferson Airplane |
Por que temos, hoje, pelo menos três gerações vivendo e operando sob o signo da saudade compulsiva é um mistério para mim. Às vésperas do terceiro milênio, tudo o que eu escuto na área tanto da produção quanto da análise da produção pop, é uma choradeira mal disfarçada de quem tem ou saudade dos anos 60, ou dos 70 ou, por incrível que pareça, dos 80 - daqueles primeiros 80, quando a escola era risonha e franca e a revolução Clash, Joy Division, Pretenders etc, parecia novo, viável.
E a nostalgia, além de paralisante, é inútil. Não apenas ela vai, sem dó nem piedade bloquear completamente qualquer esforço para se ir adiante, como em sua premissa básica está o fato que não se pode viver de novo o que já foi vivido. Nostalgia não é trazer o passado para o presente: ninguém traz o passado para o presente. O que traz é o veneno das coisas já vividas, experimentadas, encerradas, que não podem ser mudadas, que estão definitivamente lá, no passado, e jamais aqui, no presente.
Joe Cocker |
Richie Havens |
Jimi Hendrix |
Ufa. Para começar está bom, não está? Que tal, agora, acertar o relógio, mudar as páginas do calendário e, de uma vez por todas, despertar?"
Reflexão sensata da jornalista.
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