Em 1972 Luiz Melodia ainda era um jovem compositor ainda pouco conhecido e inédito em disco. Seu primeiro álbum, Pérola Negra, seria lançado no ano seguinte, e revelaria um cantor e compositor dos mais talentosos de sua geração. Melodia, até então, já chamava atenção por ser o desconhecido compositor descoberto por Waly Salomão, e autor de Pérola Negra, uma das músicas que mais se destacaram no aclamado show Fa-Tal - Gal A Todo Vapor, de Gal Costa em 1971.
O jornal Rolling Stone em sua edição nº 32, de dezembro de 1972, trazia uma das primeiras matérias com Luiz Melodia, assinada pelo sempre antenado Jorge Mautner, que tinha como título "Luiz Melodia, o gato eletrônico". Segue abaixo a transcrição:
"Luiz Melodia é um genial compositor, cantor e emissário da negritude na música popular brasileira. Autor de Pérola Negra, cantado por Gal Costa, Luiz Melodia é do Estácio de Sá, isto é: as raízes mais básicas da negritude brasileira.
Mas Luiz Melodia é ao mesmo tempo um salto de qualidade, ele é um sofisticado do morro, ou um intelectual de pensamento vertiginoso e que inclui em suas letras toda uma informação, absorção, um assumir de toda sua cultura negra de morro carioca. Orgulhoso de sua cultura, Melodia a meu ver reúne quatro grandes influências motoras:
1ª) A que emana naturalmente de seu meio-ambiente de formação, o morro carioca e a Escola de Samba de Estácio de Sá.
2ª) Blues de Jimi Hendrix e Janis Joplin.
3ª) Dramaticidade e informação pop, certas atmosferas melódico-poéticas que vêm de Roberto Carlos.
4ª) A de Gilberto Gil, o experimentalista, o alquimista da cultura negra brasileira, de sofisticação máxima, a quintessência.
Como se vê, as combinatórias produzem um produto complexo. Luiz Melodia tem em suas composições a consciência e ironia de quem enfoca as coisas com radicalismo, um radicalismo de consciência, consciência de sua negritude, de morro, de compositor de morro intelectual, e que vai fundo no amargor da existência, da amargura de sua luta, seus conflitos, e extrai daí não mais um lamento lindo mas complacente, extrai, isso sim, uma afirmação de uma alegria ativa, um ironizar criticando, mas sem perder a graça dançarina que é o conteúdo dionisíaco e vital da cultura afro-americana.
Um compositor em conflito, letras em conflito. Mas passando por cima e por dentro delas um bálsamo confortador. Um bálsamo de alegria positiva aqui agora, a sabedoria de sua cultura negra de ex-escravos, a afirmação da alegria do momento, em suma, o prazer. Uma música muito contraditória que faz sua ordem e união através da cadência do ritmo, da herança que vem dos velhos sambas, dos uivos do blues (samba dos irmãos lá do norte), daquela cadência que faz explodir em nós paisagens de maravilhas.
As músicas de Melodia são músicas de um homem ágil, um gato, um dançarino, um malandro. Melodia retransmite (agora em linguagem que adquiriu novos níveis de consciência) a mensagem de habilidade e sobrevivência que o samba sempre conteve. A música da sobrevivência, agilidade, pretos de morro sobrevivendo no difícil mundo (e eis o motivo deles retratarem também a nossa dor, pois especialmente no Brasil os brancos absorveram a cultura negra num nível maior e com muito menos resistências e conflitos do que, por exemplo nos USA. A dor de Melodia é nossa dor também, assim como a alegria, quase toda gente em nossa terra sabe batucar, o futebol anda de braço dado como samba, heróis olímpicos pretos confundem-se com estandartes de escolas de samba.
Mas Melodia é um salto nessa consciência, ele já tem atrás de si a televisão, a influência do vídeo, as informações vertiginosas de nossa época, o próprio morro, o próprio Estácio de Sá possui antenas de televisão.
Suas músicas vão de uma ironia sobre o pitoresco, até variações sobre provérbios com emoção patética, até o sarcasmo e a tragédia. Sua música sofre dissonâncias e preciosismos difíceis mesmo de acompanhar, outras vão para o básico, retornam às raízes em plenitude. É neste ziguezague radical, neste dançar por entre agudos opostos que reside sua força e característica.
É 8 ou 80 a unidade deste ziguezague (digo-o novamente) é fabricada pelo ritmo afro-brasileiro do samba já banhado em blues, blues eletrônico, os dois interligados, como consciência panamericana, ritmo das Américas negras que se reconheceu e identificou, embora mantivesse em ambas manifestações características locais profundas.
Luiz Melodia, Estácio blues, seguindo o próprio autor, música do malandro eletrônico, no fundo um sábio, na verdade um mestre.
Luiz Melodia compõe muito, seu universo é tão rico, tão variado, tão forte, sua potência criadora, sua fome, sua sede, sua força vital tão elétrica, que músicas sucedem-se a músicas, como mensagens contínuas de uma passagem borbulhante, cheia de requebros e gingas, malandragens, a vida ali no conflito. Já na base e com toda aquela visão panorâmica de paisagem colorida que só tem quem mora no alto do morro, ou que partilha de alguma maneira de sua esfera mágica, de perspectiva de subida e descida, barracos coloridos, tradição cultural com estandartes, honras, prêmios, uma História e uma História mitológica, mitos, cortejos, desfiles.
E ao mesmo tempo o desafio da cidade, o monstro de concreto que pode se transformar a qualquer minuto se se fizer o gesto correto ou se disser a palavra certa e sempre mágica (pois o marginal sabe que o mágico é realidade e a fantasia algo concreto) num maná de possibilidades. O morador do morro faz parte da cidade, não é um homem do campo, jamais tem a sua ingenuidade, ele compartilha de maneira marginal (e por isso mais profunda pois vê as coisas de um ângulo absolutamente original) da vida da cidade.
O morro, a escola de samba em contradição com a cidade e fazendo parte de sua vida, eis o complicado temário de Luiz Melodia. Que paisagem rica! Tropical, carioca urbana, onde numa riqueza de aparições existe de tudo: histórias de sabedoria de preto velho, ironia sobre a vida urbana, diálogos de empregadas 'sacando' a vida das patroas, visão cósmica de quem vê o mundo lá de cima, às vezes cores puras, simplesmente beleza, xuxu beleza, vento, sol, passarinhos, outras é só a raiva, que brota muitas vezes, tantas vezes quanto a alegria e a informação de viver com o entusiasmo de gato selvagem urbano.
Eu poderia me estender infinitamente sobre Melodia, mas prefiro passar como um relâmpago, pois é assim que vejo Melodia, como um relâmpago poético, em pessoa se apresentando: um gato elétrico e nervoso com seus grandes olhos sempre sacando coisas, seu som eletrônico, seu sorriso incrível, um dos maiores artistas dessa terra, aprendo com Melodia mil segredos que a profundíssima cultura negra tem a transmitir, e agradeço a ele, e através dele toda a sua cultura que é tão nossa, volto novamente ao batuque e carnaval de nossa infância, e sempre volto aos mil trejeitos e gingas aprendidos com todos nós com a cultura africana, e às mil visões e pensamentos incríveis, fantasias que a cultura negra criou e que hoje estão absorvidas e fazem parte viva da cultura brasileira.
Melodia é o poeta do conflito, da paixão em tom eletrônico e afastado, incursões do novo sistema nervoso do homem urbano, voltar à velha saudade, um molho único peculiar, onde a efervescência da liberdade é tão forte quanto as vibrações de sua música."
As músicas de Melodia são músicas de um homem ágil, um gato, um dançarino, um malandro. Melodia retransmite (agora em linguagem que adquiriu novos níveis de consciência) a mensagem de habilidade e sobrevivência que o samba sempre conteve. A música da sobrevivência, agilidade, pretos de morro sobrevivendo no difícil mundo (e eis o motivo deles retratarem também a nossa dor, pois especialmente no Brasil os brancos absorveram a cultura negra num nível maior e com muito menos resistências e conflitos do que, por exemplo nos USA. A dor de Melodia é nossa dor também, assim como a alegria, quase toda gente em nossa terra sabe batucar, o futebol anda de braço dado como samba, heróis olímpicos pretos confundem-se com estandartes de escolas de samba.
Mas Melodia é um salto nessa consciência, ele já tem atrás de si a televisão, a influência do vídeo, as informações vertiginosas de nossa época, o próprio morro, o próprio Estácio de Sá possui antenas de televisão.
Suas músicas vão de uma ironia sobre o pitoresco, até variações sobre provérbios com emoção patética, até o sarcasmo e a tragédia. Sua música sofre dissonâncias e preciosismos difíceis mesmo de acompanhar, outras vão para o básico, retornam às raízes em plenitude. É neste ziguezague radical, neste dançar por entre agudos opostos que reside sua força e característica.
É 8 ou 80 a unidade deste ziguezague (digo-o novamente) é fabricada pelo ritmo afro-brasileiro do samba já banhado em blues, blues eletrônico, os dois interligados, como consciência panamericana, ritmo das Américas negras que se reconheceu e identificou, embora mantivesse em ambas manifestações características locais profundas.
Luiz Melodia, Estácio blues, seguindo o próprio autor, música do malandro eletrônico, no fundo um sábio, na verdade um mestre.
Luiz Melodia compõe muito, seu universo é tão rico, tão variado, tão forte, sua potência criadora, sua fome, sua sede, sua força vital tão elétrica, que músicas sucedem-se a músicas, como mensagens contínuas de uma passagem borbulhante, cheia de requebros e gingas, malandragens, a vida ali no conflito. Já na base e com toda aquela visão panorâmica de paisagem colorida que só tem quem mora no alto do morro, ou que partilha de alguma maneira de sua esfera mágica, de perspectiva de subida e descida, barracos coloridos, tradição cultural com estandartes, honras, prêmios, uma História e uma História mitológica, mitos, cortejos, desfiles.
E ao mesmo tempo o desafio da cidade, o monstro de concreto que pode se transformar a qualquer minuto se se fizer o gesto correto ou se disser a palavra certa e sempre mágica (pois o marginal sabe que o mágico é realidade e a fantasia algo concreto) num maná de possibilidades. O morador do morro faz parte da cidade, não é um homem do campo, jamais tem a sua ingenuidade, ele compartilha de maneira marginal (e por isso mais profunda pois vê as coisas de um ângulo absolutamente original) da vida da cidade.
O morro, a escola de samba em contradição com a cidade e fazendo parte de sua vida, eis o complicado temário de Luiz Melodia. Que paisagem rica! Tropical, carioca urbana, onde numa riqueza de aparições existe de tudo: histórias de sabedoria de preto velho, ironia sobre a vida urbana, diálogos de empregadas 'sacando' a vida das patroas, visão cósmica de quem vê o mundo lá de cima, às vezes cores puras, simplesmente beleza, xuxu beleza, vento, sol, passarinhos, outras é só a raiva, que brota muitas vezes, tantas vezes quanto a alegria e a informação de viver com o entusiasmo de gato selvagem urbano.
Eu poderia me estender infinitamente sobre Melodia, mas prefiro passar como um relâmpago, pois é assim que vejo Melodia, como um relâmpago poético, em pessoa se apresentando: um gato elétrico e nervoso com seus grandes olhos sempre sacando coisas, seu som eletrônico, seu sorriso incrível, um dos maiores artistas dessa terra, aprendo com Melodia mil segredos que a profundíssima cultura negra tem a transmitir, e agradeço a ele, e através dele toda a sua cultura que é tão nossa, volto novamente ao batuque e carnaval de nossa infância, e sempre volto aos mil trejeitos e gingas aprendidos com todos nós com a cultura africana, e às mil visões e pensamentos incríveis, fantasias que a cultura negra criou e que hoje estão absorvidas e fazem parte viva da cultura brasileira.
Melodia é o poeta do conflito, da paixão em tom eletrônico e afastado, incursões do novo sistema nervoso do homem urbano, voltar à velha saudade, um molho único peculiar, onde a efervescência da liberdade é tão forte quanto as vibrações de sua música."
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