Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Belchior: Um Retrato 3x4 - Jornal de Música (1976) - 3ª Parte

"Midani fala de particularidades do contrato - de 3 anos - que assinou com seu pragmático empregado. Há um sistema de percentuais progressivos, que torna o artista 'sócio da companhia': 'Até uns 20 mil discos, a empresa perde dinheiro, mas aí  é o lado capitalista da coisa, que é só nosso. Até uns 50 mil vendidos, nossos lucros chegam a uns...digamos... 10%. Então o artista recebe essa porcentagem sobre disco vendido. No caso do Belchior há ainda os direitos sobre composição, que dão uns 18% no total. A partir daí vão aumentando as percentagens e confesso que esperamos vender uns 80, 100 mil discos dele'. Há outra cláusula que estipula que a cada disco corresponderá um show, com investimento da companhia na montagem. 'A quantia está estipulada, não quero dizer os números exatos por causa... bem... existem outras gravadoras... Além disso a gravadora prevê uma verba para o caso do produtor não ter o suficiente para a montagem do espetáculo: esse investimento será recuperado através de participação na bilheteria'.
Outro detalhe importante, já que Midani diz não ter havido 'qualquer adiantamento' para o artista mudar de gravadora, é a 'manutenção de uma assessoria constante em termos de veiculação, imagem, roupas', checada em encontros quinzenais. Midani comenta que seu contratado atraiu  imediato e espontâneo interesse da que classifica imprensa universitária. 'Mas precisamos atingir também o público de Capricho, Sétimo Céu. Por exemplo, a mulher da revista Cláudia é uma dona de cada de uns 35, 40 anos que já desistiu da maior parte da sua vida. Onde haveria apelo, no trabalho de Belchior, para ela? Fomos ver e acabamos nas letras, naturalmente: 'Viver é melhor que sonhar' (N.R: eu não disse, leitor?). Então aí estaria um tema para uma matéria na revista Cláudia, onde Belchior mostraria a essas mulheres que ainda há coisas por que viver, por que lutar.'
Ainda à procura da possível extensão do público a atingir, Midani afasta a classe média ('ela já se mostrou muito interessada em trilhas de novelas e sambões de branco') e reconhece que não poderia mudar muita coisa em Belchior, para não desfigurá-lo e perder o público universitário. Acaba descobrindo para ele, além deste, o público do operário urbano. O que estaria fazendo Belchior, coberto por um sobretudo e boné negros, charuto entre os dedos e um reluzente broche na roupa, nas páginas da aristocrática Vogue, de agosto, que define seu 'vestir' como 'clássico, de bom-gosto'? Midani, que acredita também num lançamento internacional do cantor, via WEA, faz um longo silêncio, antes da resposta: 'Pessoalmente acho que qualquer coisa é melhor que a Vogue. Mas o Bel provavelmente diria que a soma de pequenos públicos que ele atinge, inclusive o da Vogue, é que forma o público total que ele quer atingir.'
- E Belchior, o que pensa de aparecer nas páginas de Vogue? perguntou o repórter Paulo Ricardo.
B- Só o fato de, na Vogue, serem escritos meus pensamentos, fiquei satisfeito. O que importa é a mensagem, não me importa o veículo. O que vale é a obra do artista, não ele. Esse tipo de pensamento do sujeito, por fumar charuto, ser um grande capitalista, não tem nada a ver. Assim como apareço na Vogue, canto na Globo, canto em colégios e apareço na revista Rock. Chico Buarque começou no programa O Céu É o Limite (N.R.: Esta Noite  se Improvisa) apertando botão e cantando sambinhas para ganhar geladeiras e eletrodomésticos. Esqueceu isso? Isso nunca interferiu no seu trabalho, apenas contribuiu para torná-lo conhecido. O Caetano também.
P- Como você tem sido recebido pelo público depois do sucesso?
B- Tenho feito shows no interior de São Paulo, Fortaleza, em teatros, escolas, quadras de colégios. Faço porque sou chamado e me pagam. Vou por minha conta e risco. Às vezes, sozinho, com o violão e um roteiro que faço um pouco antes. Conto histórias, leio críticas de jornais e meu respeito. As pessoas têm recebido bem, os lugares estão sempre superlotados. Se cabem 300, têm 600 e até 800, como num subúrbio de São Paulo, onde as portas foram arrombadas pelo público. Recebo cartas diariamente. (Mostra uma que diz: 'Obrigado por você existir, obrigado pelas palavras de Veja eu te adoro'. Roberto, de Recife). Essa comunhão com o público reforça a minha afirmação de que sou apenas um reflexo desse mesmo público. Se os artistas não fizerem as coisas, quem vai fazer? Mas não nos esqueçamos que dependemos deles também. Eu faço a música e eles vendem.
P- Você tem alguma ideia para o próximo disco? Músicas prontas? Quais?
B- Vou seguir a mesma linha Belchior, a linha de Velha Roupa Colorida. Trabalho diariamente, me considero muito serio. Tenho inclusive algumas músicas na gaveta, que é preciso rever, porque acredito que a música que farei em 76 não é a mesma que farei em 77. Me considero um reflexo do momento. Não posso dar nomes de músicas, porque ainda não se fechou o ciclo. Ainda tenho que pensar, viver. Vou gravar em março de 77. Até lá, não sei.
(N.R.: Numa longa entrevista que me concedeu em junho, Belchior esclareceu também alguns pontos que estavam sendo criticados logo que foi lançado o disco Alucinação).
- Defino meu trabalho ao nível da canção mesmo, sou um cancioneiro. Não sou instrumentista nem letrista, mesmo que digam que eu tenho preferência pelas palavras. Sou um cara preocupado com  a forma musical que contenha letra, esse é o meu espaço criativo. Minha letra é discursiva, não poética, esse é o dado novo que as pessoas acham uma deficiência, porque ainda o analisam com padrões antigos.'
(continua)

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