Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Velhas Fitas Cassete


Os avanços tecnológicos que vieram se processando já a partir do final do século passado mudaram vários hábitos, como por exemplo o modo de se ouvir música. Lembro que em meados dos anos 90, já com o cd dominando o mercado, em detrimento do vinil, que foi aos poucos deixando de ser produzido, as fitas k-7 (ou cassete, como passaram a ser grafadas) ainda tinham mercado. Naquela época ainda era muito pouco disseminada a prática de se copiar cds. Eram raras as pessoas que tinham o mecanismo necessário para se fazer as cópias, e as que faziam esse tipo de gravações faziam meio na surdina, pois era uma prática ilegal. Hoje ainda é, mas na época tinha um peso maior, pois era algo que ainda estava se iniciando. O primeiro programa para se baixar músicas na internet foi a Napster, surgido entre 2000 e 2001, e causou na época um enorme rebuliço no mercado. Foi a primeira ameaça real ao setor fonográfico e em questões de direitos autorais. Depois a prática se disseminou, e hoje se pode baixar tudo quanto é estilo de música em vários sites e blogs especializados, não só de música como de filmes, livros, etc. Mas voltando aos anos 90, ainda era uma prática comum se gravar fitas cassete, que funcionavam na época como os cds graváveis de hoje em dia. Naqueles tempos algumas locadoras de vídeo também passaram a alugar cds. Eu tinha o costume de comprar caixas fechadas com 12 fitas cassete, para gravar cds que eu alugava com esse fim. Com isso formei um acervo enorme de fitas. Cheguei a comprar um walkman digital, o mais avançado na época, que tenho até hoje, e costumava ouvir nele minhas fitas quando saía ou viajava, e em casa ouvia em meu tape-deck. Inclusive existiam fitas próprias para se gravar de cd, e também as fitas de cromo, que tinham uma melhor qualidade de som. Hoje possuo um acervo enorme de fitas cassete, que nem ouço mais, inclusive algumas daquelas que eram lançadas pelas gravadoras junto com os vinis, como as que aparecem na foto. Sempre preferi os lps, pelo trabalho gráfico e pela durabilidade, pois as fitas tinham o inconveniente de mofar e muitas vezes embolar no cabeçote do toca-fitas. Hoje fitas cassete viraram peças de museu. As mais raras são convertidas para mp3, como se faz com discos de vinil. Hoje nem sei se fitas cassete ainda são fabricadas. Lembro que um bom toca-fitas para automóvel era uma peça indispensável para quem gostava de ouvir música dirigindo. O da marca Rodstar era o mais procurado, e muito encomendado para quem trazia muambas do Paraguai. Tudo isso hoje virou passado.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Paulo Coelho Pode Ser Legal


Paulo Coelho alcançou um enorme sucesso como escritor, um sucesso monumental. Mas antes de ser conhecido internacionalmente, era apenas considerado um cara meio maluco, doidão, ex-hippie, ex-parceiro de Raul Seixas em sua fase mais criativa e editor de revistas undergrounds nos anos 70. Foi com essas credenciais que resolvi, em 1982 adquirir o livro Arquivos do Inferno, de sua autoria. É um livro bem diferente daqueles que o tornaram um dos escritores mais conhecidos no mundo atualmente. Era um livro sem pretenções de virar best-seller, de conquistar milhares de leitores,de virar um sucesso em vendas. Talvez por isso seja uma obra mais autêntica do que seus livros de sucesso. Numa das primeiras postagens desse blog, eu falava do Paulo Coelho letrista, e ao fazer um comentário sobre seu trabalho como escritor, disse que não o considero tão bom escritor para justificar as vendagens milionárias de seus livros, mas também não o considero tão ruim a ponto de receber tantas críticas tão veementes. Já li alguns de seus livros, e até encontrei coisas interessantes, embora não seja exatamente o tipo de texto que aprecio. Mas Arquivos do Inferno até que é um livro interessante. Apesar de em 1982, ele ainda ser desconhecido como escritor, Arquivos do Inferno já saiu com uma edição holandesa, que teve prefácio de ninguém menos que Andy Warhol, o artista plástico que melhor representa a pop-art dos anos 70, e uma das figuras mais representativas da contracultura americana. Sobre Paulo Coelho Wharol diz no prefácio: "Conheci Paulo Coelho numa exposição minha em Londres, e descobri nele o passo à frente que pouquíssimas pessoas podem dar". Em uma entrevista Paulo Coelho ao falar desse livro afirmou que não permitirá que seja relançado, o que provavelmente o torne uma raridade. É um livro bem diferente daqueles que o consagraram. Não se trata de um romance, mas textos dispersos, contos, pensamentos. No livro encontramos mais o Paulo Coelho parceiro de Raul Seixas do que o escritor consagrado, e até membro da Academia. No prefácio da edição brasileira, o falecido senador, escritor e jornalista Artur da Távola diz: "Paulo Coelho é um grande marginal. Já viveu a marginalidade exterior e interior. Atravessou continentes, pessoas, ideias, aventuras e experiências. Hoje vive tudo isso sedimentado dentro, num turbilhão jamais pacificado, porém presidido por alguma ordem e muita harmonia. Sua vivência é a de um marginal que amadurece fundamente e, sem renegar a trajetória, concilia-a com os limites do próprio ser". Ao fim do texto, em um P.S., afirma: "Se Nietzsche fosse vivo, seria amigo de Paulo Coelho." Talvez esteja aí a explicação de Arquivos do Inferno ser um livro interessante. Ainda era um autor marginal, comprometido com outros valores. Se alguém tiver a curiosidade de ler o livro, basta digitar o título no google, que aparecerá uma opção de baixá-lo em pdf, sem esquecer de abandonar o preconceito.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O Humor de Cada Época


É interessante como o humor muitas vezes reflete sua época, e só funciona em determinado período. Certas piadas com o tempo se tornam datadas, e até incompreensíveis após algumas mudanças políticas e sociais. O humor político então já nasceu condenado a ficar ultrapassado rapidamente. Funciona muito bem na época dos acontecimentos, mas depois perde o sentido. Um exemplo interessante é a charge que ilustra essa postagem. Foi publicada em 1978 pelo cartunista cearense Mino. A ilustração mostra um homem visitando um museu com seu filho. No museu aparecem muitas coisas antigas, como estátuas de personagens históricos ou obras de arte antigas, a ossada de um dinossauro, um automóvel antigo, uma locomotiva "maria fumaça", e outros tantos objetos. Dentre as antiguidades aparece uma urna de votação, onde o pai se dirige ao filho e diz: "A gente fazia assim", e com uma cédula de votação mostra como se votava. Vista hoje essa charge seria entendida como a urna de votação modelo antigo, com a cédula de papel que era depositada, ser uma coisa do passado, uma autêntica peça de museu. Para o filho, que vive a época da urna eletrônica, o voto manual seria uma coisa totalmente desconhecida. A charge faria sentido, mas não teria nenhuma graça. A real intenção da piada na época era uma crítica contra a ditadura, e o voto indireto pra governador e presidente. No caso, o pai mostrava ao filho como se fazia para se votar para presidente, antes do golpe de 64.

domingo, 26 de setembro de 2010

Waly Salomão


Um dos grandes e mais importantes personagens da contracultura brasileira, que surgiu na virada dos anos 70, foi sem dúvida Waly Salomão. Poeta, ensaísta, letrista, produtor cultural, dentre outras atividades, Waly atuou em diversas áreas. Lembro que a primeira vez que ouvi falar em seu nome foi em 1977, quando ele organizou um livro que trazia uma seleção de entrevistas de Caetano Veloso, lançado por uma pequena editora, que creio que era de sua propriedade, chamada Pedra Q Ronca. Depois vim saber que ele era parceiro de Jards Macalé em várias composições, e assim fui tomando conhecimento da atuação cultural de Waly Salomão, e sua ligação com movimentos culturais ligados a uma vanguarda literária. Na foto abaixo, que tirei de um recorte de jornal de meu acervo, aparece em primeiro plano Caetano, que voltava do exílio londrino, e ao fundo Jorge Mautner e Waly.
Em 1983 a editora Brasiliense publicou o livro Gigolô de Bibelôs, e através dele tomei conhecimento dos textos de Waly e sua linguagem caótica, numa prosa poética marcada por imagens variadas, como numa colagem em que se formavam palavras, frases, pensamentos, bem característico de uma geração que buscava através da poesia marginal uma nova forma de expressão. Waly, por sinal, foi um dos primeiros poetas marginais a publicar um livro, o hoje cultuado Me Segura Qu'Eu Vou Dar Um Troço, em 1972. Adoro esse título, que foi extraído de uma marchinha de carnaval dos anos 60, interpretada por Jackson do Pandeiro. Recentemente, ganhei de presente uma bela reedição desse livro, caprichada, com capa dura e papel de ótima qualidade, publicada com recursos do Ministério da Cultura, na época de Gilberto Gil ministro. Nesse livro, como em vários de outros de seus trabalhos, ele usa o sobrenome Sailormoon – Marinheiro da Lua, em inglês. Muitos o achavam chato, falastrão, um tanto exageradamente verborrágico, porém era a sua maneira de se expressar. Nas entrevistas que vi ele participar, ele me passava um grande entusiasmo pelo que fazia, e isso ele sempre expressou. Sua vasta cultura e envolvimento em vários projetos, o levavam a se expressar de forma sempre contundente, como bom baiano. Seu trabalho como letrista é bastante rico, tendo deixado várias excelentes composições com variados parceiros. Com Macalé, por exemplo, posso citar Vapor Barato, Revendo Amigos, Mal Secreto, Anjo Exterminado e Rua Real Grandeza. Com Caetano ele fez A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa, Talismã e Mel, gravadas por Maria Bethânia. Há também parcerias com Moraes Moreira – A Cabeleira de Berenice e Lenda de São João. Em 1991 se juntou ao poeta e letrista Antônio Cícero, para realizar um projeto de parceria com João Bosco, que resultou no ótimo disco Zona de Fronteira. Como produtor musical, seu trabalho mais destacado foi o show Fa-Tal – A Todo Vapor, de Gal Costa, em 1971. Foi produzindo esse show que ele lançou Luiz Melodia, quando apresentou a Gal a música Pérola Negra, um dos grandes destaques do espetáculo, que depois virou disco ao vivo. Infelizmente, Waly nos deixou cedo, em 2003. Ainda foi lançado um livro póstumo, Armarinho de Miudezas, com seus últimos escritos. Haroldo de Campos, escreveu na orelha do livro: “Salve Waly! Sarraceno que sobreviveu aos Luzíadas e veio soprar no búzio ibérico do barroco afrobaiano com seu vertiginoso barbarinho de mil proezas”. Esse era Waly Salomão, o marinheiro da lua, uma figura que faz falta numa cena em que fez parte de forma tão contundente e absoluta, como seus escritos, sua fala, sua poesia, seu verbo encantado.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Nenem Catacanta


Nenem Catacanta absorve ideias que, tal aves migratórias, percorrem espaços e buscam pouso. Ao captar essas ideias, total ou parcialmente, faz uma espécie de varredura, e seguindo suas convicções, e assim exercendo o sentido amplo da palavra autonomia, faz com que o sentido dessas ideias migratórias se adaptem a sua linha de pensamento e ação. Dessa forma Nenem Catacanta por experiência própria consegue agregar e filtrar aqueles conceitos alheios, e os distribui já devidamente adaptados para serem postos em prática nos diferentes níveis de entendimento e necessidade do público-alvo. Já presenciei alguns fatos dessa categoria em todas as suas etapas, e posso dar meu testemunho isento, e sem nenhum tipo de interesse pessoal, que os resultados finais são plenamente satisfatórios até para aqueles mais exigentes, embora, logicamente, não encontremos a perfeição. Aliás, posso também afirmar que o conceito de perfeição pode em muitos casos ser meramente subjetivo, dependendo do grau de exigência de cada um. Porém, analisando de uma forma estudada, analítica e dotada de total imparcialidade, afirmo que o cara é bom nessa matéria.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Exagero de Punição?


Acompanhei, e continuo acompanhando o caso de Neymar e sua indisciplina e desrespeito ao seu treinador e companheiros, principalmentea o capitão do Santos, Edu Dracena. Jogadores indisplinados sempre houve. Aqueles que são craques acabam sendo aceitos pelos treinadores e dirigentes, mesmo a contragosto, por serem imprescindíveis ao time. Poderia citar inúmeros exemplos daqueles que hoje em dia são conhecidos como "bad boys". Se não me engano foi João Saldanha, que quando era técnico sugeriu a contratação de um craque problemático. Um dirigente então o desaconselhou pelo histórico de indisciplina do craque, que nem me lembro quem era. Saldanha então respondeu: "Eu quero ele pra jogar futebol, e não pra casar com minha filha". Essas coisas sempre aconteceram no futebol, porém considero o caso de Neymar grave demais para ser esquecido pelo treinador Dorival Júnior tão rapidamente. Sobre o caso, me chamou a atenção a coluna de hoje do cronista Fernando Calazans, que traz o mesmo título dessa postagem, porém sem a interrogação, ou seja, afirma que a punição sugerida por Dorival é muito severa. Diz a coluna: "...para mim o técnico Dorival Júnior, profissional que admiro, foi além do que devia: exigiu a suspensão de Neymar do jogo contra o Guarani. Ou seja, além de punir o jogador, puniu também o time, e vejam que curiosidade, puniu a si próprio." Com isso ele quis dizer que ao sacar Neymar do time, e com a queda de rendimento provocada por essa decisão, ele criou dificuldades na armação do time, que em relação à equipe que atuava antes da copa. Perdeu Robinho transferido, Ganso contundido, e agora Neymar.
Porém para o próprio bem de Neymar, ele precisa ser punido mais do que simplesmente 30% de seu salário. Dorival manteve o afastamento de Neymar no clássico contra o Corinthians, o que acho justo, mesmo torcendo para o Santos. Os elogios, até merecidos, da imprensa, a enorme cobrança de sua presença na copa, o assédio de clubes europeus, como o Chelsea da Inglaterra, e outros fatores, subiram-lhe à cabeça a ponto de se achar acima do bem e do mal. Por isso aprovo a atitude do técnico do Santos, e discordo do ponto de vista de Calazans em sua coluna.

sábado, 18 de setembro de 2010

40 Anos sem Hendrix


Na data de hoje, há exatos 40 anos, o grande guitarrista Jimi Hendrix morria, vitimado por uma dose excessiva de barbitúricos. Sua morte, aliás, ainda hoje traz uma série de controvérsias, sendo por alguns considerada como uma sucessão de erros no atendimento e socorro ao guitarrista. Mas a verdade incontestável é que naquela data o mundo perdia um músico raro, dotado de um enorme talento e versatilidade como instrumentista e compositor. É impossível imaginar o rock, os anos 60, toda a efervescência contracultural e tudo que caracterizou aquela década sem a presença da guitarra de Jimi Hendrix. Felizmente ele deixou muita coisa gravada, seja em estúdio como ao vivo, e assim sua arte foi perpetuada de uma forma mais rica em opções. As gravações póstumas que ele deixou atingem um número provavelmente sem igual no mercado da música.
Meu contato com a música de Hendrix deu-se de uma maneira bem gradual. Vim conhecendo aos poucos, ainda na adolescência, quando alguns de seus discos caíram em minhas mãos, ou através do rádio ou imagens na tv. Sua imagem marcante me chegou antes, como símbolo de uma geração. Seu cabelo black power,a indefectível faixa que amarrava na testa, suas roupas coloridas e espalhafatosas eram imagens muito referentes de toda uma era marcada por uma revolução de costumes e de comportamento. Sua forma pessoal de tirar sons de sua guitarra, usando a microfonia como componente de seus solos, tudo isso foi inovador. Lembro da primeira vez que vi, pela tv, as imagens de sua impactante apresentação no Monterey Pop Festival, em 67, quando colocou fogo em sua guitarra, se ajoelhou diante dela em chamas,enquanto jogava fluido de isqueiro para aumentar o fogo, como num ritual. Aquelas imagens me impactaram. Da mesma forma que em sua apresentação em Woodstock, ao tocar o hino americano, enquanto fazia uma alusão ao conflito do Vietnã, tirando sons semelhantes a bombas de napalm, num protesto contra a guerra, bem típico daquele momento. Aquela interpretação foi tão marcante pra mim, que toda vez que ouço o hino americano me lembro de Hendrix. Essa, aliás era outra marca de Hendrix, o lado intérprete. Algumas interpretações de Hendrix são tão marcantes, que é como ele se tornasse co-autor das músicas que ele apenas interpretava. Posso citar, por exemplo, Hey Joe, Rock Me Baby, All Along The Watchtower e Wild Thing, que um ouvinte menos informado pode muito bem achar que são músicas próprias. O Jimi compositor, aliás, é um dos mais fantásticos surgidos no rock. Suas melodias, letras, arranjos, harmonia, tudo traz uma marca forte e pessoal.
Apesar de toda sua grandeza Hendrix tinha suas inseguranças e uma forte auto-crítica, revelada em algumas de suas biografias. Sua voz, por exemplo, ele achava inadequada. Só ganhou confiança quando ouviu as gravações de Bob Dylan, que por sinal foi uma de suas inspirações como compositor. Ele pensou: se Dylan com sua voz conseguia dar seu recado e ser um ótimo intérprete para suas composições, ele também poderia se arriscar como cantor. Falar de Hendrix renderia muito papo, e não gosto de postagens longas demais. Só queria deixar aqui minha homenagem.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Livros de Rock e Jazz Vindos de Portugal


A partir do fim dos anos 80 até meados da década seguinte as livrarias brasileiras passaram a receber edições portuguesas de livros sobre rock e jazz, desde traduções de letras até biografias de artistas e bandas, além de textos analíticos sobre o assunto. A editora mais presente nessa leva de obras vindas de Portugal era a Assirio e Alvim, que oferecia uma enorme quantidade de títulos. Apesar de importados, esses livros eram vendidos a preços razoáveis, e vieram preencher uma grande lacuna com relação a publicações de obras voltadas à música internacional. Possuo uma boa quantidade daqueles livros que aqui chegavam, e sinto saudades daquela época. Muitas daquelas obras eram traduções de textos de estudiosos e críticos europeus, que jamais seriam traduzidos e lançados por uma editora daqui. Os títulos de autores estrangeiros sobre rock e jazz, principalmente o rock, normalmente são de autores americanos. Através daqueles livros, por exemplo, li traduções de textos alemães falando de eventos e festivais acontecidos por lá, e que raramente eram noticiados por aqui. Curiosamente, a leitura das obras causavam um estranhamento ao leitor não habituado ao português falado e escrito em Portugal. Muitas palavras e expressões são completamente estranhos a nós, que falamos o “idioma brasileiro”. Mas depois de alguns livros lidos, muitas daquelas expressões já se tornam familiares e compreensíveis. Foram inúmeros os títulos que adquiria e devorava. Biografias de Neil Young, Led Zepellin, Pink Floyd, Beatles, Stones, Elvis, Lou Reed, Billie Holiday e tantos outros. Traduções de letras de Frank Zappa, Bob Dylan, Jim Morrison. Havia também livros de análise do fenômeno rock, num contexto social em uma linguagem acadêmica, situando a influência da música produzida por vários desses artistas e bandas citados e outros tantos na sociedade. Já no fim dos anos 90 esses livros foram sumindo de nossas livrarias, o que é uma pena. Acredito que esses títulos continuem a ser produzidos por lá, mas não chegam até nós, a não ser em livrarias que trabalham com importados, e por um preço bem acima daquele que pagávamos. No Brasil ainda é muito tímido o mercado de livros sobre rock, embora nos últimos anos muitos lançamentos do gênero venham acontecendo, alguns deles, inclusive comentados nesse espaço. Mas ainda não se pode comparar com o mercado português e sua diversidade de títulos.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

As meia-noites duram menos que os meio-dias


As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez. Os vidros quando bem limpos quase não se vê. Chicletes são pra mastigar mas não pra engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As meia-noites duram menos que os meio-dias. As tartarugas nascem em ovos mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a terra. Os carros fazem muitas curvas pra subir a serra. Crianças gostam de fazer perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.
Arnaldo Antunes

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Preciosidades em Vinil - Lóki? (Arnaldo Batista)


Em 1974 os Mutantes, em seu núcleo básico: Sérgio, Arnaldo e Rita – estava dissolvido, com cada um seguindo seu rumo. Primeiro foi a saída de Rita, e pouco tempo depois Arnaldo também deixava a banda, que sob a orientação musical de Sérgio, enveredava para o rock progressivo. Rita naquele ano formava a banda Tutti-Frutti para acompanhá-la em sua empreitada de fazer um rock básico, e lançava o disco Atrás do Porto Tem uma Cidade. Arnaldo, por sua vez, buscava fazer seu som, distante das influências progressivas do irmão, e ao deixar os Mutantes sabia que teria o desafio de fazer um trabalho solo digno de sua genialidade e criatividade, comprovadas nos discos de sua antiga banda. Ainda estava sob contrato com a gravadora Phonogram, e ao conceber o álbum, gravou “Lóki?” gastando poucas horas de estúdio, com necessidade e urgência de uma gravação instantânea para captar aquele clima “genialmente doloroso”. Arnaldo vivia um momento particularmente conturbado: o fim de seu casamento com Rita Lee, sua saída dos Mutantes, e seu envolvimento com as drogas. A música representava para ele uma saída para o seu drama pessoal, por isso a urgência e a necessidade que sentia de criar e gravar seu primeiro álbum como artista solo. Embora o título do álbum remeta ao vilão das histórias em quadrinhos, o irmão desnaturado de Thor, o Deus do Trovão, Loki era apenas uma gíria paulista para designar louco, pirado. O disco começa com “Será Que Eu Vou Virar Bolor?”, um rock com uma letra onde ele contesta uma série de valores, e termina perguntando a si mesmo “onde é que está meu rock n' roll?”. Uma Pessoa Só, a faixa seguinte faz parte do disco O A e o Z, dos Mutantes (já sem Rita), até então inédito, só sendo lançado muitos anos depois. Os arranjos do maestro tropicalista Rogério Duprat fazem uma fusão com elementos de jazz ao rock de Arnaldo. Não Estou Nem Aí é outra boa composição de Arnaldo, com uma letra viajante, que fala em “um mundo de cristal e num sonho surreal”, onde o essencial era “decolar toda manhã”. Vou Me Afundar na Lingerie, outra faixa do álbum, é uma das melhores do disco. Tanto letra como melodia, arranjos, tudo genial. Cê Tá Pensando Que Sou Lóki?, é um rock-samba bem ao estilo da fusão de ritmos e ideias desenvolvida pelos Mutantes. Outras faixas, com Desculpe, Honk-Tonk (instrumental, só piano), Navegar de Novo, Te Amo Podes Crer e É Fácil comprovam a fase criativa em que Arnaldo se encontrava na época. Gravado em fins de 74, e lançado no início do ano seguinte, “Lóki?” acabou se tornando um marco do rock brasileiro. Não é um disco comercial, e vendeu pouco, mas a crítica da época logo reconheceu o valor da obra, como Ezequiel Neves: “Que eu saiba, é a primeira bad-trip transformada em lp. Mas não deixa de ser divertido ouvir um dos baluartes do rock tupiniquim dando bandeira de piração. O disco chega a comover com sua sincera melancolia.” O crítico Tárik de Souza diria: “Minhas homenagens ao melhor lp de rock de 1975. Desigual, imperfeito, caótico, depressivo, enérgico, sentimentaloide, inacabado. Um perfeito 3x4 do rock nacional, com três vantagens sempre ausentes no setor: sinceridade, potência e personalidade.” Em sua biografia, Balada do Louco, escrita por Mário Pacheco, o autor diz sobre “Lóki?”: “ Procurei o dito em sebos e não encontrava, pois o mesmo era disputado aos tapas pelos fãs, e valorizado como uma peça de leilão, que custava naquele tempo cinco mil cruzeiros, o que era grana demais para mim na época, e que ainda hoje continua sendo, mas para encerrar o papo, consegui uma fita do disco”. A cópia que eu tenho, original da época, eu consegui por pura sorte, e sem precisar gastar nenhuma fortuna, muito pelo contrário. Encontrei numa banca de saldo de uma loja nos anos 80. Era do estoque antigo da loja, e o dono, que não conhecia Arnaldo Batista, colocou o disco em promoção para desencalhar. Hoje é um importante item de minha coleção.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A Saga dos Deadheads


Um dos grupos de fãs mais dedicados a seus ídolos, é certamente os Deadheads, como são conhecidos os velhos fãs da banda psicodélica Greateful Dead. Eles costumavam seguir a banda por todo o lugar onde ela se apresentasse, sem medir sacrifícios. Criou-se em torno da banda uma espécie de comunidade, onde seus fãs montavam acampamento,vendia-se artesanato e comida natural num clima típico das comunidades hippies dos anos 60. Bastava a banda partir em turnê para os deadheads os seguirem em suas kombis pelas estradas, rumo à próxima parada, em uma outra cidade. Após a morte de seu líder, o guitarrista e vocalista Jerry Garcia em 1995, o Greateful Dead deu uma parada, e não tenho notícias sobre a continuação ou não da banda. Acho que continuar o Greateful Dead sem Garcia não teria muito a ver, pois ele era a alma da banda. Sobre esse grupo fiel e dedicado de fãs, foi produzido um documentário, e lançado pouco após a morte de Jerry Garcia chamado "Tie-died: Rock'n Roll's Most Deadicated Fans", dirigido por Andrew Behar, que na época declarou: "A cultura dos Deadheads criou uma espécie de família". De fato, a convivência desse grupo de fãs pelas estradas e shows de sua banda favorita acabou criando entre eles um sentimento fraternal. O documentário em sua esssência havia sido concebido para mostrar esse grupo de fãs acompanhando a banda ainda em atividade, e não algo que representasse um passado até então recente. O diretor na época comentou: " Antes da morte de Jerry, estávamos prestes a lançar um documentário sobre algo atual, do presente. Mas agora está saindo um filme sobre algo que aconteceu no passado. A morte de Garcia mudou a perspectiva do filme. Mas eu gostaria que o Dead ainda estivesse ativo, fazendo shows. É muito triste, é o fim de uma era". O diretor fez questão de deixar claro que o fato de seu filme ter sido lançado pouco mais de um mês após a morte de Garcia - ele morreu em 9 de agosto de 95 e o filme foi lançado em 22 de setembro - não se tratou de um oportunismo, pois o filme foi concebido e rodado com a banda ainda em atividade. O filme, como era de se esperar, não foi lançado no Brasil, que eu tenha notícia. Talvez procurando em algum site especializado em baixar filmes se encontre a obra. Espero um dia poder assistir a esse filme.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Poesia Concreta & Eu


Meu contato com a poesia concreta surgiu na adolescência, através dos livros didáticos. Não propriamente livros nos quais eu estudava, mas como minha irmã é professora de português, ela recebia muitos livros de Comunicação & Expressão, e sempre na parte de literatura havia referências à escola concretista. Eu costumava pegar os livros que ela recebia, e ia nas últimas páginas, que normalmente era onde os poemas concretistas apareciam. Eu gostava de ver aqueles textos fora dos padrões, usando uma linguagem que remetia a conceitos lúdicos, de se jogar com as palavras, construir e desconstruir, oferecer novas formas de se comunicar, não só através de palavras, como de símbolos. Aquela espécie de jogo me fascinava, e assim passei a tomar conhecimento de toda uma simbologia e uma nova linguagem. Na época alguns dos músicos que eu mais admirava, como Caetano, Gil, Tom Zé e Walter Franco principalmente usavam elementos do concretismo em muitas de suas letras, e isso aumentava ainda mais meu interesse por aqueles textos. Passei a ter grande interesse por tudo que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, os principais artífices do movimento produziam, e assim fui cada vez mais me fascinando pelo que a poesia concreta tinha a oferecer. Na verdade meu interesse pela poesia concreta antecedeu ao da poesia tradicional. Quando, mais tarde, eu passei a ser um consumidor de livros, logicamente passei a adquirir algumas obras concretistas, não só em poesia, como análises teóricas, como uma forma de melhor compreender o mecanismo de criação e elaboração do texto concretista. Na imagem que ilustra essa postagem, por exemplo, aparecem algumas das obras que me ajudaram a compreender e decodificar os signos que ajudam o leitor a mergulhar no fascinante universo concretista. O livro "Teoria da Poesia Concreta", de Augusto, Haroldo e Décio por exemplo, é uma obra altamente esclarecedora e envolvente para quem se interessa pelo tema, trazendo manifestos e textos teóricos publicados entre 1950 e 1960. Outros dois livros importantes são À Margem da Margem e Viva Vaia, de Augusto de Campos, sendo o segundo uma coletânea de textos publicados em diferentes obras. Um dos livros mais fascinantes do movimento em minha opinião é Galáxias, de Haroldo de Campos - um livro que me fascinou pela linguagem dinâmica, numa prosa que remete a imagens que vão se desenrolando através do texto, que quase não tem pontuação. A edição que possuo é acompanhada por um cd chamado Isso Não É Um Livro de Viagem, em que Haroldo recita alguns fragmentos do texto de Galáxias. Infelizmente Haroldo nos deixou pouco tempo depois de publicar essa edição. A importância dos irmãos Campos, vão além da poesia que produziram, pois escreveram vários textos teóricos sobre diferentes temas e traduziram autores de difícil conversão para outras línguas, pela particularidade de seus textos, como e.e.comings, Mallarmé, Cocteau, entre outros.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A "Militância Política" de Leila Diniz


Em uma postagem anterior, falando sobre o apresentador Flávio Cavalcanti, eu citei um belo gesto dele, ao dar emprego e refúgio a Leila Diniz, quando ela estava sendo perseguida pela ditadura militar. Ali eu falava sobre a não-militância política de Leila, e portanto, a falta de coerência naquela perseguição. Como na época ela era casada com o cineasta Ruy Guerra, e vivia num ambiente formado por intelectuais de esquerda, concluí que fosse esse o principal motivo dela ser perseguida. Ontem, lendo uma matéria sobre um livro que está sendo lançado, a respeito da censura política sobre publicações de cunho sexual, chamado “Maria Erótica e o clamor do sexo – Imprensa, pornografia, comunismo e censura na ditadura militar”, vi que havia outras razões. À princípio a censura que se exercia sobre essas publicações teriam implicações meramente morais, porém os órgãos de repressão absurdamente viam ações comunistas e subversivas na revolução sexual que essas revistas e livros poderiam representar. Achavam que tudo ligado a sexo era parte de um bem elaborado plano de Moscou para desestruturar a família e acabar com o capitalismo. A matéria diz: “O decreto 1.077, que instaurou a caça às bruxas em livros e revistas, foi chamado de “Decreto Leila Diniz”, por causa da entrevista que ela deu ao Pasquim, pregando o amor livre e denunciando o teste do sofá no meio televisivo. Leila, para os milicos, estava a serviço dos comunistas.” Sobre essa famosa entrevista, foi um escândalo na época, pelos palavrões (que eram representados por (*)) e declarações não muito comuns à época, como “Não vou comparar meus homens porque é sacanagem”, “Você pode amar muito uma pessoa e ir pra cama com outra” e “O palavrão virou verdade em mim, e quando as coisas são verdades todo mundo aceita”. Em junho de 1982, quando se completaram 10 anos de sua morte, em um desastre aéreo, o jornal O Pasquim lançou uma edição especial no formato de revista em homenagem a Leila, reproduzindo na íntegra a famosa entrevista, e com textos de Drummond, Millôr Fernandes, Betty Faria, Sonia Braga, Domingos de Oliveira e Marieta Severo, entre outros. Drummond, por exemplo, escreveu: “Este nome anda no coração dos moços, que dele fazem uma celebração da vida. Paradoxalmente, a celebração se realiza em torno da morte. Leila Diniz, pulverizada há dez anos num desastre de avião, vai sendo lembrada com entusiasmo pelos que conheceram e pelos que dela ouviram contar e se impressionaram com a sua personalidade. Hoje, Leila caminha para o mito, e temos de reconhecer que há mitos fecundos. Leila Diniz – o nome acetinado de cartão-postal, o sobrenome de cristal tinindo e partindo-se, como se parte, mil estilhas cintilantes, o avião no espaço – para sempre. Leila para sempre Diniz, feliz na lembrança gravada: moça que sem discurso nem requerimento soltou as mulheres de 20 anos presas ao tronco de especial escravidão”.

domingo, 5 de setembro de 2010

Todas as Letras e Uma Correção



Em 1996 chegou às livrarias o livro Gilberto Gil – Todas as Letras, pela editora Cia das Letras, que como o título sugere, traz tudo que Gil escreveu no formato letra de música, sozinho ou com parceiros. A primeira edição, a que possuo, traz cerca de 420 letras, abrangendo todos os discos por ele lançados até então, músicas que fez para outros intérpretes, algumas letras não musicadas, rascunhos, e cerca de 90 letras inéditas. Foi um grande trabalho de pesquisa, um resgate da obra poética de um dos mais reconhecidos letristas de nossa música. A organização da obra ficou a cargo de Carlos Rennó, um grande estudioso de nossa música, principalmente no que se refere ao texto poético. O livro ainda traz textos de apresentação de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik. Como da primeira edição pra cá Gil lançou outros discos e continuou compondo, a obra ganhou outra edição mais atualizada e ampliada. Algumas letras, cerca de 80, são comentadas por Gil – as circunstâncias em que as escreveu, seu processo criativo, etc. Em um desses comentários eu observei um engano do autor. É com relação à canção Pai e Mãe, do disco Refazenda, de 1975. Seu comentário diz: “Composta no dia em que eu completei 33 anos, 26 de junho de 1975. Uma música de afeto profundo pelos pais, colocando todos os homens queridos como sendo um prolongamento do pai, e todas as mulheres amadas como sendo o prolongamento da mãe. Meus pais moravam em Vitória da Conquista na época, e festejaram muito a canção.” O engano que Gil cometeu foi com relação à data em que a música foi composta. No dia citado por ele, seu aniversário em 1975 – 26 de junho, o disco onde se encontra a música já havia sido lançado. Assisti a um show dele no dia 20 de junho daquele ano (seis dias antes de seu aniversário), quando o disco havia acabado de ser lançado, e lembro bem dele cantando Pai e Mãe, quando fez uma introdução dizendo “Agora vou cantar uma música que compus para os meus pais”. Acredito que ele tenha composto a música no ano anterior, ao completar 32 anos.

sábado, 4 de setembro de 2010

Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata


A revista Pop nº 4, de fevereiro de1973, trazia uma matéria sobre um show de Jards Macalé, no antigo Teatro Tereza Raquel, no Rio – espaço onde aconteceram grandes espetáculos ao longo dos anos 70. Na verdade, apesar da coluna ser dedicada à resenha de shows, a matéria fala mais da carreira e vida de Macalé, do que propriamente do espetáculo que ele vinha apresentando. De qualquer forma, aí segue o texto, assinado por Wladimir Tavares de Lima:
O que pintou na hora, a gente fez. Improviso, criação... É claro que a gente obedece a uma estruturação, mas a criação é livre. É como plantar grama no jardim. As flores nascem depois. Jards Anet da Silva “Macalé” fez questão de não se prender a nenhum planejamento, durante as quatro semanas que ficou no Teatro Tereza Raquel com seu show Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata. Mostrando sucessos antigos como Samba de Uma Nota Só, ou revendo a carreira com Negro Gato e Gothan City, Macalé revive em duas horas dez anos de compositor e intérprete, usando sempre arranjos supernovos, agressivos e também muitos elementos de jazz. Macalé não é baiano, como muita gente pensa, mas carioca. Em 1963, com dezenove anos, conheceu Caetano e se ligou no grupo baiano. Mas só começou a carreira pra valer em 69. Formou um conjunto, o Dois, Três, Quatro, Cinco, Seis ou Sete no Balanço, e tocava em bailinhos de fins de semana. Foi violonista no show Opinião e trabalhou em mil apresentações do Arena. Estudou violão clássico com Jodacyl Damasceno, técnica de composição com Guerra Peixe e violoncelo com Peter Dauelsberg. Dirigiu shows e participou de gravações como arranjador e violonista. Em 69 apareceu no IV FIC, com Gotham City.
Os produtores de discos se grilaram com Gothan City. Ficaram assustados porque não era um produto regular, direitinho, pra consumo, dentro do esqueminha de festival. Por isso não conseguiu gravar a música. Só foi gravar mesmo no ano seguinte, um compacto duplo para a RGE. Em 71 foi para Londres e lá ficou três meses trabalhando com Caetano e Gil. Voltou quase no fim do ano passado e, depois de dez anos, conseguiu gravar na Philips o primeiro LP. “O mar continua não estando pra peixes (e eu sou um deles), nem pra aquarius, nem pra quem está a fim de cantar como um passarinho de manhã cedinho. Mas estamos aí por toda a cidade, pagando em suor a felicidade, voando dentro de uma navilouca, já que navegar é preciso, como viver também o é.”

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor


Existem dezenas de livros escritos sobre Raul Seixas - biografias, análises, homenagens, coletâneas de textos e letras, etc. Mas Raul, que em criança, além de sonhar em ser cantor de rock, também queria ser escritor, só viu em vida um único livro seu ser publicado: As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Esse livro, lançado em 1983, traz um vasto material entre textos e desenhos que ele guardava desde a infância, e coisas que ele foi escrevendo mais tarde, e até então inéditas. O livro foi lançado por uma pequena editora, Shogun Arte, que pertencia a Paulo Coelho, que na época ainda não era um escritor famoso, sendo mais conhecido como ex-parceiro de Raul. É de Paulo Coelho, aliás, o prefácio do livro, que começa assim: "Blade Runners. Ano de 2020 na cidade de Thor. Os caçadores de androides saem da cabeça de William Bourroughs e invadem as ruas superpolusosas, em busca de suas vítimas. A terra sacode-se nos eixos, já não há mais espaços.
Brasil 1955. A cidade de Thor começa a ganhar contornos entre as colinas e praias de Salvador. A Quarta Dimensão está definitivamente plugada no Universo-Terra, mas poucas pessoas são capazes de perceber o fenômeno. Raul Seixas, com 13 anos, estabelece contatos imediatos com esta Quarta Dimensão e começa a escrever os cadernos/documentos. Tudo que nossa geração vive naquela época vai sendo registrado pouco a pouco por Raul (...)"
Os textos do livro são uma espécie de diário, onde o adolescente Raul exprimia seus pensamentos, falava de suas experiências, etc. Selecionei, para ilustrar, o texto abaixo:

"A grande novidade agora, sou eu usando óculos.
Todos fazem perguntas ao ver-me de cara nova, e a todos pareço dever uma explicação:
" - Astigmatismo" (digo). Uma risada forçada, uma pilhéria sem graça e vamos partindo pra outra. No entanto esses óculos vieram mesmo beneficiar-me. Certas pessoas que não gostavam do meu aspecto pessoal, passaram a gostar do meu novo "eu". Acham que assim pareço "gente direita" e "parecer" é muito importante para essa gente. Posso afirmar que é muito interessante ter um par de olhos de vidro pendurado nas orelhas e nariz.
Hoje pela manhã encontrei um conhecido que me perguntou tolamente:
"- Você está usando óculos agora?, é?"
Eu lhe respondi:
" - Ontem eu tomei banho de óculos, sabe? A gente fica enxergando tudo chuviscado. embaça o vidro..."

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Preciosidades em Vinil - Estudando o Samba (Tom Zé)


Outro ítem precioso de minha coleção de vinis é Estudando o Samba, de Tom Zé. Lançado em 1976, o álbum traz experimentações sonoras e pesquisas musicais do mais maldito dos tropicalistas. Em Estudando o Samba, Tom Zé apresenta 12 composições, sendo que a única que não é de sua autoria é uma releitura bem pessoal, num canto bem intimista do clássico bossanovista A Felicidade, de Jobim e Vinícius. Os títulos das demais músicas são todos em monossílabos: Mã, Toc, Tô, Vai, Ui!, Dói, Mãe, Hein?, Só, Se. O disco traz duas inusitadas parcerias com Elton Medeiros - sambista de raiz, parceiro de Cartola e Paulinho da Viola. Apesar do título e das parcerias com Elton Medeiros, o disco não é de samba, embora o ritmo apareça, às vezes sutilmente, em alguns trechos de músicas. As letras são outro ponto forte do álbum, e trazem toda a verve poética característica de sua obra, como em Se: "Ah! Se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria/ Com essa cobaia/ Que eu sempre fui em suas mãos".
Apesar do caráter experimental, o disco não é daqueles de difícil assimilação e entendimento. A levada do ritmo das composições é agradável a qualquer ouvido, mesmo àqueles não muito habituados a inovações e experimentos.
Em meados dos anos 80, Estudando o Samba acabou salvando a carreira de seu autor, pois em virtude do ostracismo em que se encontrava no mercado da música, Tom Zé, desiludido, havia decidido abandonar a música e voltar para sua terra natal - Irará, na Bahia. Nessa ocasião, David Byrne, líder da banda Talking Heads, e também cineasta, estava no Brasil, onde apresentaria seu filme True Stories em um festival de cinema no Rio. Devido a um problema entre Byrne e a organização do festival, o filme não foi exibido. Com o dia livre, Byrne resolveu percorrer alguns sebos, a procura de discos de samba. Em um determinado sebo, um vendedor mal informado, ao ver a palavra "samba" no título do álbum, colocou Estudando o Samba entre os discos que separou. Ao ouvir o disco, David Byrne pirou com aquele som diferente de tudo, e ficou tão impressionado, que pediu ao produtor e músico Arto Lindsay, um americano que foi criado em Pernambuco, e já havia trabalhado com Caetano e Marisa Monte, para localizar o autor daquele disco. Após contactá-lo, lançou Tom Zé no mercado americano, através de uma coletânea de suas músicas, e o disco inédito The Hips of Tradition. A partir daí, a carreira de Tom Zé decolou novamente, inclusive no Brasil.